sábado, 23 de abril de 2011

Solidão e amores findados no Rio de Janeiro: o álbum “Surf”, de Kid Abelha


Kid Abelha é a banda brasileira que eu mais gosto. Gosto da sonoridade, gosto das letras, gosto do fato de a vocalista ser mulher, porque acho que isso faz diferença e imprime mais sensibilidade às canções - não à toa, a minha banda preferida de todos os tempos, No Doubt, é liderada por uma mulher, a incrível-espetacular-poderosa-linda-e-perfeita Gwen Stefani.


Adoro o pop que o Kid Abelha faz. As canções são de escuta fácil, agradáveis, e as letras são sempre interessantíssimas. 


Enfim, vamos ao que interessa: após quase um mês escutando no carro o mesmo CD composto de sucessos extraídos das paradas da Billboard, resolvi escolher um CD da minha banda nacional favorita para escutar. Às escuras, escolhi “Surf”, que nunca me atraiu tanto. Não sei se nunca tive sensibilidade suficiente para compreendê-lo ou se ele simplesmente foi o álbum certo na hora certa... O que sei é que, por semanas e semanas, escutei-o com uma perspectiva completamente diferente.


Lançado em 2001, “Surf” mostra um Kid Abelha mais introspectivo, apesar de a primeira faixa ser justamente um dance super eletronizado (esta palavra existe?) – os elementos eletrônicos, aliás, fazem parte de várias canções.

Na minha opinião, o álbum é extremamente coeso e passa um sentimento muito grande de solidão; mas não de uma solidão deprimente e resignada, e sim, de uma solidão produtiva, otimizada. Todas as canções me remetem à sensação de aproveitar os momentos de solidão para refletir, para crescer, para amadurecer. O nome do álbum não é em vão: já li que o nome “Surf” foi escolhido por alusão à solidão em que o surfista se encontra quando está no mar, sozinho, somente em companhia das ondas...

Fins de relacionamento e amores mal resolvidos também são temas presentes nas letras das canções.

Outra coisa que o álbum me passa bastante é um certo “carioquês”... “Surf” tem a cara do Rio de Janeiro.

No intento de explicar melhor a maneira como entendi o álbum, comentarei faixa por faixa:

1) Eu contra a noite


A faixa que abre o álbum traz uma traiçoeira ideia de que será um álbum alto astral, principalmente porque “Eu contra a noite” foi a faixa mais dançante que o Kid Abelha produziu em muitos anos – desde o álbum “Remix”, de 1997, creio que a banda nunca fez algo tão eletrônico, tão feito para danceterias. 
Mas não se enganem, a letra já fala, de cara, sobre a relação com a solidão, e sobre tentar fugir dela recorrendo à vida noturna:
“A solidão, sozinha, corria atrás de mim, experimentando assim a si...”


 2) 3 garotas na calçada



Descobri recentemente que Frejat participou da composição desta música! Ela me soa como algo que Rita Lee cantaria no início de sua carreira, tem uma levada meio Mutantes, meio crua, meio sessentista...
É uma canção muito animada que fala sobre a vida de artista, sobre a alegria e a instabilidade das pessoas que vivem de música.

3) O rei do salão



George Israel dá a esta canção a perfeita definição: "surf music em preto e branco".
"O rei do salão" possui, na minha opinião, toda a essência do álbum. 
O surfista reina na onda, mas está sozinho. Dentro do "salão" (que descobri que é sinônimo de "tubo", uma parte da onda), ele se encontra, vive o melhor momento do surf, mas também tem que lidar com a solidão, pois fica sozinho dentro da onda.
No refrão, ouvimos Paula Toller citando nomes de diversas praias do Brasil e até do Havaí, e eu imagino o surfista vendo as praias enquanto surfa... É como se um oceano de possibilidades passasse diante de seus olhos, e ele reflete sobre a sua própria situação... 
Ademais, a letra de "O rei do salão" diz respeito também à intensidade e efemeridade das situações, pois fala sobre o apogeu vivido pelo surfista, sobre o momento mais importante de sua rotina, que é estar dentro da onda perfeita, e sobre aproveitar ao máximo este momento porque ele acaba:
"O tempo já vai virar,
As águas frias me avisam.
Quando a ressaca passar,
Meu reino vai se acabar."


 4) Ressaca 99


Esta é uma das canções que eu mais gosto! Passa uma sensação tão boa de "no stress" e "don't worry, be happy", hehehe...
A mim, "Ressaca 99" soa como a agonia de alguém no seu ambiente de trabalho, a aflição, o descontentamento com o que está fazendo, a vontade louca de ir embora ou procurar pequenas distrações para se esquecer do trabalho chato... 


"Nem é pra se esconder prá falar no celular;
Nem é pra almoçar, avançar sinal, nem tomar café nem fumar
"



Mas para quê se estressar, para quê querer avançar o tempo? Logo logo o dia acaba e chega a hora de descansar. "Vale a pena esperar, todos vão à praia pra ver o mar".
Enfim, para mim, a mensagem da canção é que há tempo para tudo. O primeiro verso da letra diz tudo: "Não é pra se estressar", porque uma hora a oportunidade certa vem.
Outro detalhe legal é que várias expressões utilizadas em outras canções do álbum são citadas em "Ressaca 99": o rei do salão, as meninas da calçada... Enfim, todos eles terão seu tempo, todos terão seu momento de ir à praia ver o mar.
Situações cotidianas, mensagem legal, ritmo alegre, homenagem ao estilo carioca de vida, auto referência... Kid Abelha mixa tudo isso e o resultado é uma canção sensacional. 

5) Gávea Posto 6

Esta sim tem uma letra bem tristonha... Fala sobre a melancolia do fim de um relacionamento, sobre andar pelos lugares e achar que tudo está de acordo com o seu péssimo estado de humor: "o céu do Rio, tão cinza", o rádio "disposto a me matar", tocando canções que mexem exatamente na ferida não cicatrizada... 
Mas, no fim, o eu-lírico reconhece que precisa superar a situação, e aprende enfim que "ninguém é autor de amor algum" e "perder alguém não chega a ser o fim". 

6) 10 minutos


Mais uma das minhas preferidas e, sem dúvida, uma das letras mais interessantes do álbum. 
Entendo que a música fala, em um primeiro plano, sobre sexo, sobre o orgasmo, mas estes são apenas os motes para tratar de algo mais profundo (sem duplo sentido, hein!?): a supervalorização da intensidade e do prazer (tudo a ver com o meu último texto postado aqui no blog), e as consequências que isto pode trazer.
A proposta do eu-lírico para o ser objeto de seu desejo é a seguinte: em 10 minutos sou capaz de te fazer gozar e te dar a melhor transa da sua vida ("Peço 10 minutos pra te convencer, nós dois ficamos juntos se eu conseguir te fazer corar, te fazer sorrir, e nunca me esquecer ao se despedir"). Mas será que em 10 minutos é possível que nasça entre dois seres algo maior que um simples prazer sexual? A mim soa como aquela velha história: era só pra transar, mas acabou rolando algo mais:


"Restam 10 minutos pra te compreender, nós dois perdemos tudo se eu conseguir te fazer chorar, te fazer pedir pra não te procurar nunca mais"


Na frase "nós dois perdemos tudo", esse "tudo" quer dizer a casualidade, o combinado inicial de sexo sem compromisso: tudo estaria perdido se ambos se apaixonassem! E é o que acaba acontecendo: "Felicidade vai me abandonar, tá me abandonando, me abandonou", ou seja: o sonho acabou; com o fim do sexo, cada um vai para um lado, e o que fazer com este sentimento que ficou?


Mas, para mim, a grande sacada da música é mesmo o primeiro refrão:
"Felicidade vai me acontecer...
Tá me acontecendo...
... Aconteceu!"


É a descrição perfeita para a intensidade e efemeridade dos momentos de prazer! É como sentir o orgasmo chegando, apreciar o ápice do prazer, e depois senti-lo indo embora. E isto não vale somente para sexo: todos os outros momentos de intensa felicidade na vida são assim! Porque tudo que é intenso demais tem duração curta. 

7) Eu não esqueço nada



Esta linda balada é também uma das mais sofridas e fala sobre a dificuldade de superar uma perda, mais ainda quando a pessoa que se perdeu continua tão presente em nossas vidas, fazendo com que nossos sentimentos e velhas lembranças também continuem se fazendo presentes.


"Vejo você de tão longe que só eu sei que é você... Só eu sei te ver..."


No trecho acima, o eu-lírico mostra como dói ver que ainda vive dentro de si aquela sensação de familiaridade que foi estabelecida ao longo da relação... Sabe aquela mulher que, depois de tantos anos, aprendeu a conhecer as manias do marido melhor do que ninguém? É isso. Enquanto o relacionamento ainda perdura, esse conhecimento mútuo tem serventia, mas e quando tudo acaba, o que fazer com tudo isso?, com todas essas lembranças e coisas que você teve que aprender?

"Lembro de tudo que houve, de tudo que ia haver, do que não foi nada dentro dos nadas que havia..."


Essa é a parte em que o eu-lírico fica remoendo as recordações dos momentos, das coisas pelas quais passaram juntos, e também das expectativas que depositou naquela relação, dos planos, dos sonhos, e, pior ainda, de tudo aquilo que parecia significar tanto mas talvez não tenha significado tanta coisa. É triste ver que certas coisas não foram tão especiais para o outro quanto foram para você.


"Nem o alívio do fim, nem o delírio do começo, nem um dia comum..."


Aqui, o eu-lírico está tentando se acostumar com a nova vida, com uma nova vida sem o ser amado... Nem um dia é comum, cada um traz uma sensação diferente, mas infelizmente, nenhuma sensação parecida com as experimentadas ao longo do relacionamento. É como ver tudo novo, mas sob uma perspectiva mais triste.


"Você me trata tão bem, mantém meu coração ferido. Vou lhe fazer um pedido: não fique perto de mim."


Este trecho é o que acho mais triste! É muito comovente porque consigo me colocar no lugar da pessoa que se sente assim. Seria mais fácil superar o fim de um relacionamento se o ser amado realmente não fosse digno do seu amor... Mas o que mais dói é ver que a pessoa é merecedora de toda a dor que você sofre. Quando ela te trata tão bem, seu coração permanece ferido, ou fica ainda mais machucado, por perceber a pessoa especial que você perdeu. Seria menos doloroso se ela agisse estupidamente, dando-lhe motivos para acreditar que foi melhor mesmo terminar tudo. Por este motivo, talvez seja melhor manter distância, evitar encontros, ficar longe, pois assim provavelmente fica mais fácil esquecer, superar e recomeçar...


Esta canção é realmente digna de todos os aplausos. Sempre me surpreendo com a capacidade do Kid Abelha de produzir coisas tão poéticas e ao mesmo tão próximas da nossa realidade.

8) Da lama à pista


Agonia: não há palavra mais adequada para descrever o que penso que o eu-lírico sente ao cantar os versos desta música. "Da lama à pista" me passa uma sensação de agonia da vida, "a vida é besta e eu tive um dia de cão", o dia foi ruim, nada está legal, eu também não estou legal, "hoje eu não tô grande coisa", o que fazer da vida?
Creio também que o eu-lírico entende-se como uma pessoa instável e desequilibrada ("Vivo morrendo de amor e quero férias de mim"), capaz de ir do céu ao inferno em segundos, ou realmente da lama (auge) à pista (ponto mais baixo); uma pessoa que tem dificuldades em lidar com as constantes mudanças da vida mas, ao mesmo tempo, quer reverter esse quadro: "A vida é boa, a vida é bela, manda você de presente, e de repente, inventa outra vida urgente".

9) Solidão, bom dia!


Interpreto esta bela canção como uma tentativa otimista e esforçada de acostumar-se à sensação de estar solitário:


"A solidão me conhece, vou tentando esquecer
Mas ela chega, me olha e estende a sua mão
Então só resta me dizer:
Solidão, bom dia!
Abre a porta, pode entrar"


A solidão pode até não ser uma excelente companhia, mas se ela tem se tornado constante, por que não fazer as pazes com ela? 
Quando disse, no início do texto, que a solidão experimentada pelos personagens das histórias contadas em "Surf" não é uma solidão resignada, referi-me a este sentimento expressado em "Solidão, bom dia": o desejo de não ver mais a solidão como algo negativo, uma vez sabido que ela vai continuar fazendo-se presente em nossa vida.

10) Pelas ruas da cidade (A vida continua)


Mais uma canção que adoro e me identifico muito! E olhem que, quando escrevi "Consolo urbano", nem a tinha em mente.
"Pelas ruas da cidade" fala exatamente sobre a mensagem de seu subtítulo: a vida continua! 
Independentemente de as coisas estarem boas ou ruins, a vida não para, tudo segue, o mundo continua girando, e se nada para, não podemos parar também.


"Quando a gente pensa que está tudo okay,
Vem saudade, vem doença, vem tristeza..."


"Quando a gente pensa que está tudo o fim (...),
Vem um novo ritmo, vem mais um amigo, um novo trabalho..."


É isso aí... A vida continua. É ou não é um tremendo consolo?
Kid Abelha é mesmo genial.


11) Quando eu te amo


Podem até discordar, mas a canção que fecha o álbum me parece falar sobre a forma como um novo amor faz com que toda a nossa visão de mundo mude, adequando-se ao nosso novo (e radiante!) estado de espírito. Passamos a enxergar todo o mundo com olhos mais românticos e o amor se torna parâmetro para tudo. Desacostumamo-nos com as antigas sensações e tudo assume um gosto de "primeira vez", pois tudo agora é diferente, uma vez que o amor entrou em nossa vida.


"Depois que te vi, não sei mais olhar
Só vejo você em todo lugar
Depois que te vi, não sei mais beijar,
Só beijo você em todo lugar"


Os versos "Líquidos vertendo, músculos pensando, fluindo, partindo, mão e contra mão, densas e viscosas, doces e salgadas, gotas, manchas, poças de sangue e suor" me fazem lembrar o álbum "Iê iê iê", de 1993, principalmente as faixas "O beijo" ("A língua, a saliva, os dentes") e "Mil e uma noites" ("É digestão, fotografia, perna forte, braço forte"), todas com palavras e expressões que descrevem esse lado tão físico (quase fisiológico! Hehehe) do amor e do sexo.



Em suma, "Surf" é um álbum extremamente interessante e merecedor de toda exploração. Aparentemente despretensioso, em virtude da sonoridade leve e agradável aos ouvidos, às primeiras escutas pode parecer que a intenção do Kid Abelha foi apenas fazer uma coisa cool, carioca, jovem e surfistinha para atrair novos fãs... No entanto, ao "viajar" nas letras e procurar entender melhor o significado delas, o que pude concluir é que este é um dos álbuns mais adultos e maduros da banda. 


Se antes, em "Seu espião", "Educação sentimental", e "Tudo é permitido" (vide, por exemplo, a contradição entre a firmeza de caráter da mulher de "Como eu quero" e a infantilidade da mulher de "Gosto de ser cruel"), os eu-líricos aparecem explorando todo tipo de situação e sensação, assumindo facetas diferentes e apresentando versões diferentes de coisas iguais, talvez em uma grande busca por si mesmo, as canções de "Surf" me soam como algo produzido por alguém que já tem consciência de tudo que é, que já se descobriu, mas que percebeu que este auto conhecimento ainda não é suficiente para fazer da vida algo fácil de ser levado.


De qualquer forma, valeu a pena ter dedicado um tempinho especial para ouvir, apreciar e tentar entender "Surf", e afinal, a conclusão que fica é que Kid Abelha é muito mais que uma simples banda de hits dos anos 80.


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