"Quantas vezes eu mesmo, que rio de tais seduções da distração, me encontro supondo que seria bom ser célebre, que seria agradável ser ameigado, que seria colorido ser triunfal! Mas não consigo visionar-me nesses papéis de píncaro senão com uma gargalhada do outro eu que tenho sempre próximo como uma rua da Baixa. Vejo-me célebre? Mas vejo-me célebre como guarda-livros. Sinto-me alçado aos tronos do ser conhecido? Mas o caso passa-se no escritório da Rua dos Douradores e os rapazes são um obstáculo. Ouço-me aplaudido por multidões variegadas? O aplauso chega ao quarto andar onde moro e colide com a mobília tosca do meu quarto barato, com o reles que me rodeia, e me amesquinha desde a cozinha ao sonho. Não tive sequer castelos em Espanha, como os grandes espanhóis de todas as ilusões. Os meus foram de cartas de jogar, velhas, sujas, de um baralho incompleto com que se não poderia jogar nunca nem caíram, foi preciso destruí-los, com um gesto de mão, sob o impulso impaciente da criada velha, que queria recompor, sobre a mesa inteira, a toalha atirada sobre a metade de lá, porque a hora do chá soara como uma maldição do Destino. Mas até isto é uma visão improfícua, pois não tenho a casa de província, ou as tias velhas, a cuja mesa eu tome, no fim de uma noite de família, um chá que me saiba a repouso. O meu sonho falhou até nas metáforas e nas figurações. O meu império nem chegou às cartas velhas de jogar. A minha vitória falhou sem um bule sequer nem um gato antiquíssimo."
(Trecho do "Livro do desassossego", de Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa)
Aceitar que a vida foi boa para nós não implica, necessariamente, em admitir que não merecemos todos os créditos que recebemos. Humildade e modéstia são de muito bom tom no momento de receber aplausos, mas ser humilde e modesto não consiste em não sentir-se digno daquilo que se recebe.
Se as circunstâncias da vida fazem de nós pessoas supostamente "privilegiadas" (as aspas serão justificadas no próximo parágrafo), por termos conosco pessoas ou coisas especiais, com as quais sempre podemos contar e às quais devemos muitas de nossas vitórias, não é por outro motivo senão merecimento próprio.
Não existem sortudos ou azarados, afortunados ou desgraçados: o que existe é a colheita de cada um, de acordo com aquilo que é semeado.
Por isto, se nesta vida todas as situações sempre nos foram muito favoráveis, e com base nelas galgamos honestamente os nossos degraus rumo ao topo, não é preciso sentirmo-nos culpados.
Todavia, em nem todos os aspectos da vida somos beneficiados com situações que já nascem tendenciosas ao triunfo - há, para todos, o lado fácil e o lado difícil da vida. Neste último, sentiremos um grande contraste, em relação ao primeiro.
Se, em algumas ocasiões, tudo parece agir em nosso favor, em outras, a impressão que temos é que tudo foi planejado visando o nosso fracasso.
Nestas horas é que devemos nos lembrar de que Deus nunca coloca em nossos ombros fardos mais pesados do que eles podem suportar. Somos capazes de sairmos vitoriosos de qualquer situação que nos seja infligida.
Por isto é que não se pode avaliar pelos mesmos critérios a vitória de cada ser humano. Cada um vem de um contexto diferente, cada um carrega consigo as marcas deixadas pelos eventos que fazem parte de sua história, cada um se encontra em um grau de amadurecimento. Em comum, há o fato de que todos têm o que merecem. Em um momento ou outro, todos colhem seus louros.
E assim, cada um de nós realiza sua marcha, cada qual a seu ritmo, cada um com suas medalhas no pescoço e suas cruzes nas costas.
Que saibamos, portanto, receber os devidos aplausos, sem nos autodepreciarmos, mas também, sem vaidade; sem olhar altivo, julgando-nos acima dos outros, nem baixo, julgando-nos menor do que todos; e sim, com um olhar direto, cabeça erguida, olhando pra frente, cientes da longa caminhada que ainda temos pela frente. Não deixemos que o êxito momentânea esvaeça a nossa visão do trajeto a ser percorrido!
E, outrossim, que saibamos também recepcionar as provas e expiações que se apresentarem diante de nós, da mesma forma: com humildade, de cabeça erguida, sem nos autoflagelarmos, cientes de que tudo que nos acontece é em razão de nosso merecimento, mas também cientes de que dispomos de todo o necessário para superar as adversidades e conseguir, enfim, sermos felizes.
E melhor do que eu para falar sobre as dificuldades da vida, e o merecimento de cada um de nós, só mesmo Emmanuel, na psicografia perfeita de Chico Xavier, em lição do livro "Segue-me!":
O FARDO
“Cada qual levará a sua própria carga.”
Paulo. (Gálatas, 6:5)
Quando a ilusão o fizer sentir o peso do próprio sofrimento, como sendo opressivo e injusto,
recorde que você não segue sozinho no grande roteiro.
Cada qual tolera a carga que lhe pertence.
Fardos existem de todos os tamanhos e feitios.
A responsabilidade do legislador.
A tortura do sacerdote.
A expectativa do coração materno.
A criança sem ninguém sofre seu pavor.
A indigência do enfermo desamparado.
O pavor da criança sem ninguém.
As chagas do corpo abatido.
Aprenda a entender o serviço e a luta dos semelhantes para que não te suponhas vítima ou herói
num campo onde todos somos irmãos uns dos outros, mutuamente identificados pelas mesmas
dificuldades, pelas mesmas dores e pelos mesmos sonhos.
Suporte com valor o fardo de tuas obrigações valorosamente e caminha.
Do acervo de pedra bruta nasce o ouro puro.
Do cascalho pesado emerge o diamante.
Do fardo que transportamos de boa vontade procedem as lições de que necessitamos para a vida
maior.
Dirás, talvez impulsivamente: -“E o ímpio vitorioso, o mau coroado de respeito, e o gozador
indiferente? Carregarão por ventura, alguma carga nos ombros?”.
Responderemos, no entanto, que provavelmente, viveram sob encargos mais pesados que os
nossos, de vez que a impunidade não existe.
Se o suor alaga sua fronte e se a lágrima lhe visita o coração, é que a tua carga já se faz menos
densa, convertendo-se, gradativamente, em luz para a sua ascensão.
Ainda que não possas marchar livremente com o teu fardo, avança com ele para a frente, mesmo
que seja um milímetro por dia...
Lembra-te do madeiro afrontoso que dobrou os ombros doridos do Mestre. Sob os braços duros
no lenho infamante, jaziam ocultas asas divinas da ressurreição para a divina imortalidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário