"Trinta raios convergentes unem-se formando uma roda
Mas é o vazio entre os raios que facultam o seu movimento.
Modelai o barro para fazer um jarro.
O oleiro faz um vaso, manipulando a argila.
Mas é o oco do vaso que lhe dá utilidade.
Recortai no espaço vazio das paredes portas e janelas
a fim de que um quarto possa ser usado.
Paredes são massas com portas e janelas
mas somente os vazios entre as massas
lhes dá utilidade.
Desta forma, o ser produz o útil
mas é o não-ser que o torna eficaz."
(Lao Tse)
Esse vazio do qual as pessoas tanto falam, esse vazio que dizem sentir dentro de si, essa sensação inexplicável de que falta alguma coisa... Não, eu não o sinto. Porém, por alguma razão que desconheço, tenho um sentimento indeterminado que me leva a agir como se eu sentisse esse vazio, como se precisasse preenchê-lo.
Não é a primeira vez que alimento um vício, que nutro uma paixão, que me vejo obcecada por um prazer mundano; mas desta vez é mais estranho, pois creio que posso dizer que jamais senti minha vida tão completa como agora. Nunca houve momento em que eu precisei menos de um vício do que agora. Jamais foi tão inexplicável o refúgio em uma paixão para preencher um vazio que não existe.
Sei que se trata de apenas uma fase, assim como já passei por tantas outras nos últimos meses, e mais tantas nos últimos anos, e sempre e sempre nesta vida. Eu sou assim. Estas coisas fazem parte da minha vida, e me fazem feliz, trazem-me alegria, distração e prazer; e depois que a fase passar, lembrarei-me dela com saudade e talvez até zombe. O problema é que isso me consome. Sinto-me ridícula por saber que deixei minha vida chegar a esse ponto. É como se eu me recusasse a viver a realidade, é como se eu não aceitasse tudo de maravilhoso que a vida está me proporcionando... É como se eu insistisse em trocar as alegrias concretas do mundo real pelos prazeres incertos e utópicos da minha imaginação.
Teimo em querer algo que está fora do meu alcance, teimo em sonhar com coisas que correm maior risco de terminarem em frustração e futilidade, quando a verdade é que tenho em minhas mãos tudo que é necessário para obter felicidade real, possível e estável. Parece que sou uma criança gulosa e mimada, que nunca está satisfeita com o que ganha, mesmo quando ganha todos os presentes que podem caber em uma loja de brinquedos. Ou ainda: parece que sou uma adolescente mimada e indecisa, daquelas que gastam toda a energia à procura de algo, e quando finalmente consegue, decide que não era bem aquilo que queria.
Parece. Na vida real, não é bem assim. Eu penso e sinto como um ser necessitado de algo para preencher seu vazio, mas não ajo como um. Ao menos, não perante as outras pessoas. Não é esta a postura que eu adoto, talvez porque eu não queira admitir para mim mesma que esse meu outro lado existe e que merece ser atendido (e se eu tenho a maturidade de não dar voz ativa aos meus deslumbres, então talvez eu não seja tão idiota). O mais engraçado é ver como a verdadeira eu lida bem com tudo isso. Ela se sai muito bem fazendo isso.
Quem lê minhas lamúrias pode pensar que ajo como uma desequilibrada e coloco tudo a perder em nome de uma ilusão... Mas não. Na vida real, eu faço o que é certo: não deixo escaparem as oportunidades, aproveito-as bem, e quando o desfecho é exitoso, usufruo, comemoro, agradeço a quem me ajudou a consegui-lo, consolo aqueles que não tiveram a mesma sorte que eu. E sigo em frente, como um ser humano maduro e saudável faz. Contudo, no restante do tempo - e eu não sei explicar onde é que consigo esse tempo -, entrego-me às fantasias, aciono o meu outro eu, a sonhadora, a cigarra, a ridiculamente deslumbrada. Meus dois eus convivem muito bem com o paradoxo das minhas aspirações.
Também é muito interessante a forma como o meu lado iludido tenta justificar as paixões. Apaixonada e fanática, listo uma porção de razões pelas quais estou correta em estar viciada, elencando as qualidades do objeto do meu vício. Nem minto, nem invento. É tudo verdade. Daqui alguns anos, quando esta fase passar, o atual alvo da minha paixão continuará sendo digno de admiração; a diferença é que eu não estarei mais tão admirada. O que é que se passa comigo?
Imagino que o lado bom de tudo isso é o fato de que essas fases funcionam como períodos destinados ao conhecimento e apreciação de coisas às quais eu não tinha me atentado antes. É uma boa teoria, e provavelmente seria verdadeira, se o objeto do meu vício fosse algo realmente louvável, rico e repleto de coisas a acrescentar em minha vida... Porém, eu penso: o que é mesmo ser fútil? Por que estou me julgando fútil por admirar o que estou admirando agora? Não há dúvidas de que sou patética por estar tão obcecada, mas um pouco de admiração pode ser merecido.
Olho para trás e relembro de outros vícios, outras paixões, outras fases pelas quais passei. Foram muito intensas, assim como esta está sendo; duraram pouco, assim como prevejo que esta durará; foram muito divertidas, assim como essa tem sido... E depois que tudo passou, ficou aquela saudade gostosa de uma época em que podia me dar o luxo de perseguir uma coisa que gosto. E passado mais tempo ainda depois do fim, ficaram os conhecimentos que eu agreguei durante a fase.
Todavia, eu sinto medo destas fases. Se elas sempre vieram, provavelmente é porque sempre virão; e eu estou ciente de que, um dia, chegará um momento em que eu não poderei vivê-las e saboreá-las. Chegará o dia em que eu não terei o tempo, a oportunidade ou o direito de negligenciar as coisas realmente importantes da vida em favor das coisas que apenas alimentam o lado artista da minha alma. E o que farei quando isto acontecer? Como procederei quando escutar, ao mesmo tempo, o chamado urgente do mundo real e o convite sedutor do mundo de fantasias? Atenderei ao primeiro, é claro; sou estúpida, mas nem tanto. Entretanto, o segundo ainda existirá, e não me será completamente indiferente. Precisarei ser muito, muito forte para conseguir ser feliz e eficiente a despeito de tudo isso. Precisarei de muito equilíbrio para saber conviver com essa dualidade.
Curioso: essas fases geralmente vêm em situações propícias para as suas vivências. Mais uma vez, olho para trás, e quando faço um balanço geral de todas, concluo que elas quase nunca vinham em momentos nos quais eu não tivesse ao menos um mínimo de oportunidade de senti-las plenamente. E mesmo quando vieram, eu soube conciliar. Deu tudo certo. Tudo sempre deu certo. E sempre vai dar. Todas as coisas encontrarão o seu caminho... E eu encontrarei o meu.
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