"A mente humana é como Salomé no início de sua dança, escondida por sete véus - véus da inibição, da timidez, do medo. Com os amigos, a pessoa pode tirar um véu, depois outro, talvez três ou quatro véus. Com a pessoa amada, ela tira cinco ou até seis véus... Mas nunca o sétimo. A mente humana gosta de cobrir sua nudez. Você nunca conseguirá adentrar na mente humana. Por isso eu uso a narcose." - Dr. Larsen, no filme "O sétimo véu"
Assisti ontem ao filme "O sétimo véu", uma pequena obra prima de 1945, dirigida por Compton Bennett, trazendo os fabulosos Ann Todd e James Mason nos papéis principais. Resolvi assistir porque a sinopse chamou a minha atenção: uma famosa pianista, após sofrer um acidente, não consegue mais tocar, porém um psiquiatra acredita que seu problema seja de ordem psicológica, e resolve hipnotizá-la para conhecer a história de sua vida. Gosto de dramas, gosto de histórias com pitadas de psicologia, e o filme não me desapontou.
Francesca, a pianista, tem um histórico de frustração e repressão de seus sentimentos. Aos 14 anos, já órfã de mãe, perdeu também o pai, não lhe restando ninguém no mundo a não ser Nicholas, que mal era seu parente (era um parente de seu pai). Nicholas era um homem reservado, rico, estranho e frio, com grande apreço pela música, mas sem dom para executá-la. A Nicholas é confiada a guarda de Francesca, e ela vive em sua casa, sem que no entanto jamais se forme algum vínculo de família ou mesmo amizade entre ambos. As tentativas de aproximar-se de Nicholas ou mesmo de saber a história de sua vida, por parte de Francesca, são infrutíferas, e a menina cresce sem qualquer carinho ou atmosfera acolhedora, o que reforça em sua natureza o caráter sério e tímido, já que desde pequena ela nunca teve nenhum estímulo para ser alegre, vivaz e carinhosa.
Certa feita, através de uma carta de uma professora, Nicholas descobre que Francesca toca piano, e pede para que ela o faça. Tímida e receosa, a menina nega. Porém, quando o próprio começa a entoar uma melodia, ela vai se aproximando e logo mostra o seu talento. Começa então uma empreitada de Nicholas, que visa torná-la uma notória pianista, empenhando todo o seu dinheiro, tempo e esforços em sua educação e promoção de sua carreira.
Ainda na adolescência, Francesca apaixona-se por um rapaz, o também músico Peter, que ensina-a a sorrir, a divertir-se e a aproveitar melhor sua vida. Desejosa de casar-se com ele, desaponta-se com a negativa de Nicholas, que não só não permite que ela se case, como também leva-a embora para outro país, no afã de afastá-la do pretendente e de aprimorar sua educação musical.
Os anos se passam e Francesca, já mulher, consegue a tão aclamada fama e notoriedade que Nicholas sempre almejou para ela. Ela ama a música, mas todo o mais em sua vida é triste, sem cor, sem amor. Ela não tem liberdade, pois Nicholas planeja cada detalhe de sua vida e de sua carreira. Não a permite ter amizades nem amores; só com ele ela sai para jantar e fazer qualquer outra coisa. Ele cuida até mesmo de seu figurino, e sempre a recomenda ter muito cuidado com suas mãos. "Cuide de suas mãos", "nunca machuque suas mãos", "suas mãos são seu tesouro".
Eis que um dia Francesca se apaixona novamente (pelo retratista Max), e novamente Nicholas não dá o seu consentimento. Mas desta vez Francesca já é uma mulher de 24 anos, e Nicholas não tem muitos meios de contê-la. Ela ameaça ir embora com seu pretendente, e Nicholas acusa-a de ser ingrata, por abandonar a pessoa que passou sua vida investindo nela e em seu dom, em detrimento de um homem recém conhecido que mal planejava casar-se com ela. Revoltado, ele bate nas mãos da moça - nas mãos, seu maior tesouro -, fazendo-a chorar e fugir com Max. É nesta fuga que Francesca sofre o acidente de carro que faz com que ela própria acredite que nunca mais poderá tocar.
Entretanto, seu problema é claramente psicológico, já que suas mãos não sofrem grandes lesões. Posso até dizer que, se houve alguma sequela, é mais decorrente das pauladas dadas com a bengala por Nicholas, do que pelo próprio acidente de carro. Deprimida, frustrada e traumatizada, Francesca tenta suicidar-se, e a partir daí passa a ser tratada pelo Dr. Larsen, o psiquiatra que disse a frase que abre este texto. Larsen opta pelo método hipnótico, mas não descarta a possibilidade da narcose.
"O sétimo véu" tem um bilhão de aspectos interessantes e pode-se dizer que 90% deles não são esclarecidos. No final - que como muitíssimo bem observou Daniele Rodrigues de Moura em sua própria análise sobre o filme ("poderia ser um clichê, mas trabalhado dentro da psicologia, ele surpreende e nos deixa ainda mais intrigados"), o expectador tem uma pista sobre vários dos enigmas da personalidade de Francesca (e, por que não?, de Nicholas também), mas mesmo assim, resta um sem-número de questionamentos não resolvidos.
Não tenho conhecimento algum sobre psicologia e psicanálise, porém, gosto de me atrever a fazer algumas análises. Há várias coisas que me intrigam na história dos personagens principais, e que, segundo minhas próprias crenças, podem ter alguma relação com a formação da personalidade deles, bem como, com a forma com que ambos viveram suas vidas até que tudo culminasse na tentativa de suicídio de Francesca e no final que ela própria escolhe para si. Algumas destas coisas:
* Francesca sempre teve um espírito genioso, caráter forte, perspicaz e inteligente; entretanto, nada disso impedia que sua alma fosse frágil e impressionável, notavelmente suscetível de ser impactada por outras pessoas. À primeira vista, poder-se-ia dizer que apenas Nicholas era um demonstrativo disto, pois resta inconteste que ele exerce enorme poder sobre Francesca (o próprio psiquiatra reparou nisto), poder este que eu credito não só ao medo que ele infundia nela, mas também ao estranho interesse que ela sentia por ele e que jamais pôde concretizar. Contudo, se repararmos bem, veremos que Francesca sempre foi assim, mesmo antes de conhecer Nicholas. Ao psiquiatra, ela relata um caso em que sua melhor amiga Susan realizou uma travessura na escola, e foi Francesca quem sofreu a punição, punição esta que inclusive prejudicou-se em sua audição para ganhar uma bolsa na escola de música. Sob hipnose, Francesca afirmou que Susan sempre a convencia a fazer coisas que ela não queria, e sempre saía ilesa, ficando o castigo para ela. Por mais inocente que estas historinhas possam parecer, é inegável que causaram grande impacto no espírito de Francesca, e isto fica claro na cena dos momentos anteriores ao primeiro grande recital de Francesca, quando, já adulta, ela reencontra Susan e esta a relembra da história da punição. A dor destas lembranças estorvou Francesca de tal modo que ela mal conseguia encarar a amiga enquanto tocava, e ao fim do show, ela desmaiou de tensão. Para mim, ficou evidente que Susan foi um dos elementos da vida de Francesca que a impediam de ser tudo aquilo que ela queria ser, e outrossim, uma das coisas que a fazia sofrer por nunca receber benefícios quando ela cedia às imposições dos outros (nestes outros, inclua-se Nicholas).
* Nicholas é um personagem curiosíssimo, e sua história não é contada no filme. Tudo o que se sabe é que ele é um homem de posses, que não gosta de falar sobre sua mãe, não se relaciona com os criados e evita contatos íntimos ou qualquer afeto com Francesca. Ele é fechado, distante, severo, mas muito inteligente. Sua personalidade impressiona a jovem Francesca, e ela deseja conhecê-lo melhor, mas não pode. O que ela sempre sentiu por ele era uma estranha mistura de interesse com medo. Ela o admirava e o tinha como um mestre, mas ao mesmo tempo, temia-o e tinha-o como um repressor de tudo que ela poderia viver.
* Para mim, é interessante o fato de que tanto Francesca quanto Nicholas são órfãos, e embora o filme dê poucos detalhes (propositalmente, creio eu) sobre os pais de ambos, eu imagino que esta ausência dos pais e a dificuldade dos personagens de falar sobre eles influenciou muito na formação de seus caráteres. A mãe de Nicholas foi uma senhora bonita que abandonou o pai de Nicholas para viver com um músico. Curiosa sobre esta história, Francesca pergunta aos criados, que dizem que isto é tudo que sabem. Em seguida, ela condena a atitude da mãe de Nicholas, no que é repreendida pelo criado. "Quem sabe algum dia você não fará o mesmo?", ele diz. Na parede da sala de Nicholas há um retrato pintado de sua mãe, mas ele se recusa a falar sobre ela. Curiosamente, no futuro, quando Francesca já é uma bela mulher e uma pianista aclamada, Nicholas quer que pintem um retrato dela também. Seria também a tentativa de imortalizar uma mulher que ele poderia perder? Coincidentemente, o pintor do retrato vem a ser justamente o homem com quem Francesca planeja fugir, e tais planos amedrontam Nicholas de tal modo que ele abre seu coração (embora ainda com bastante contenção e pouca amabilidade) a ela e diz que a proíbe de ir embora, alegando que ela não poderia abandoná-lo depois de tudo o que fez por ela.
* A obsessão de Nicholas pelas mãos de Francesca também é fonte de muitos questionamentos meus. A parte óbvia é que Nicholas se preocupava com as mãos de sua pupila porque eram fundamentais para o desenvolvimento de seu talento, já que ela tocava piano. Todavia, é interessante investigar isso mais profundamente. A psicologia biodinâmica coloca as mãos, a pele e o tato como representativos da história e da vida de uma pessoa. Wilhelm Reich chegou a dizer que "o corpo é o inconsciente visível". Nesta atmosfera, as mãos entram como um indicativo dos aspectos concernentes ao carinho e à ternura. E se há duas coisas com as quais Nicholas não era acostumado, eram o carinho e a ternura. Mas isso não significa, necessariamente, que ele não as quisesse. No fundo, Nicholas tinha muito medo de ser feliz, e muito medo do amor. Talvez temesse que outra mulher pudesse abandoná-lo como sua mãe o fez. Isto, porém, é muito óbvio. O que não me parece óbvio, mas sim, muito intrigante, é que Nicholas insistisse tanto para que Francesca cuidasse de suas mãos, nunca deixando-as sofrer nenhum machucado. É como se ele estivesse zelando não só pelo seu talento, mas também pela sua capacidade de oferecer carinho a alguém. É como se ele quisesse castrá-la e assenhorear-se de Francesca, retendo para si próprio qualquer possibilidade de ela amar outro homem. Era esquisita a relação de Nicholas com o carinho e o amor. Na primeira vez em que ele vê Francesca, está com um gato em seu colo, afagando-o gato e tocando em seu pêlo. Em seguida, pergunta a Francesca se ela quer acariciar o gato, e ela, muito nervosa, diz que não. Sua negativa frustra Nicholas de uma maneira estranha, e nisto, Francesca admite que odeia gatos. Para mim, é evidente que esta é uma metáfora sobre carinho. Em outra cena, Francesca está agradecida a Nicholas por algum motivo, e o abraça. Nicholas repele veemente o abraço e grita com ela, ordenando que nunca mais faça isso. É muito estranha a forma como ambos lidam com o afeto e em especial com o toque, motivo pelo qual permaneço crendo que a obsessão de Nicholas pelas mãos de Francesca tem um motivo muito maior que o simples desejo de que ele as conserve para tocar piano.
* Outra coisa que ficou transparente para mim, como expectadora do filme, é que Francesca nunca amou Peter nem Max. Eles apenas representavam para ela a possibilidade de ser livre e sair da esfera de domínio de Nicholas para enfim ser feliz, pois Nicholas não permitia que ela fosse feliz. Ele não gostava de ser feliz e também não queria que ela o fosse. Prova disso é a cena de quando ele retorna de viagem e pede para que ela toque algo para ele. A esta altura, Francesca já estava namorando Peter e sentia-se feliz. Então, tocou uma melodia alegre, ao estilo das músicas que ouvia nos restaurantes que frequentava com Peter. A reação de Nicholas à canção animada que Francesca tocou foi enérgica e irritada: "Você está louca? Pedi para você tocar, e não me vir com esse lixo". E assim, Francesca tocou uma melodia mais séria, que agradou mais Nicholas. Ademais, uma característica de ambos é que nunca sorriam. Francesca queria ser feliz, e para isto precisava livrar-se de Nicholas e da vida que ele lhe proporcionava. Viu em seus dois namorados esta possibilidade, mas Nicholas sempre impôs obstáculos. Sete anos após separar-se do primeiro namorado, Peter, Francesca busca reencontrá-lo, mas a dor mal permite que ela fale sobre este reencontro ao psiquiatra, mesmo sob hipnose. Ao fim do filme, descobrimos que naquela noite Peter revelou a ela que tinha se casado. Francesca ainda tinha esperanças de casar-se (leia-se: ser livre, fugir de Nicholas), e quando soube que isto não seria mais possível, viu seus sonhos morrerem - não porque amasse Peter, mas porque desejava imensamente deixar a vida com Nicholas. Anos depois, ao ser galanteada por Max, o pintor, Francesca nega a si mesma a oportunidade de apaixonar-se por ele. "Eu odeio o amor, odeio estar apaixonada", ela diz a ele. Em alguns momentos, aparenta sentir algo por Max, o que ele interpreta como a reciprocidade de seu sentimento. Ela não diz que sim nem que não ("talvez", é o que ela diz), e mesmo assim, aceita viajar com ele. Trata-se de mais uma tentativa (novamente repudiada por Nicholas) de fugir e ir em busca de sua liberdade e felicidade. Ainda a Max, Francesca diz, em outras palavras, que sua vida é mais tranquila sem amor, pois que ela construiu para si própria uma barreira feita de música. Ela vivia segura naquele mundo onde somente a música existia e ninguém podia penetrar essa barreira. Mas então apareceu Max, oferecendo-lhe novamente a chance de querer mais que isso... E isso a deixava insegura, pois a luta pela própria felicidade oferecia riscos a Francesca: ela temia Nicholas, não sabia como falar sobre isto com ele. No fundo, Francesca preferia iludir-se com a tranquilidade de uma vida preenchida apenas com música, do que dar a si própria a chance de acreditar que poderia ser feliz de outra maneira; ser realmente feliz.
* É interessantíssimo notar como a capacidade de sentir afeto transparecia de forma muito lenta e muito discreta na personalidade de Nicholas. A forma como Francesca reagia a isto também é bastante egnimática. Pouca gente deve notar, mas o fato é que durante o filme todo Nicholas sempre a chamou de Francesca; contudo, na última cena em que Francesca se apresenta em um concerto, ele a chama de "querida". Isto passa despercebido, já que nenhuma outra atitude no comportamento de Nicholas demonstra qualquer carinho por ela, apenas aquela palavra: "querida". Acho que nem a própria Francesca repara. Mais ao fim do filme, quando Nicholas a procura para incentivá-la a continuar o tratamento psiquiátrico, ele fala com ela com mais suavidade - não necessariamente com ternura nem com sinais de qualquer coisa que possa sentir por ela, apenas com menos rigor. A atitude dele provoca um breve sorriso no rosto dela. Intrigado, ele pergunta a ela o porquê do sorriso, no que Francesca responde: "Engraçado, você é tão diferente quando é gentil... Nestes momentos, eu faria qualquer coisa por você". Com isto, já ciente do impacto de sua suavidade, Nicholas convence-a a procurar o psiquiatra. A declaração de Francesca aparentemente pode ter alguma conotação romântica, mas esta é a análise óbvia. Se examinarmos melhor, poderíamos concluir que esta disposição dela em "fazer qualquer coisa por ele" tem muito mais a ver com o seu costume de sempre obedecer às ordens dele, do que propriamente com o amor que ela porventura sentisse por ele. Esta subserviência da qual Francesca fala está mais relacionada com o poder disciplinar que Nicholas exerce sobre sua alma, do que com os sentimentos que ele faça nascer nela.
Imagem retirada do site do canal TCM |
Em suma, o filme tem uma porção de cenas, frases e detalhes que supostamente não querem dizer muita coisa; porém, agremiados e examinados, dão vários indícios de aspectos fundamentais da história e da personalidade de Francesca e Nicholas, e da estranha relação entre eles. Ao fim, não se sabe dizer se o que existia entre ambos era exatamente amor. Apesar de minha porção "romântica blockbuster" ter vibrado com o fim, o fato é que até hoje não sei o que aquele fim significou. A despeito de Peter e Max, a já curada Francesca escolheu permanecer vivendo com Nicholas. E o que isto quer dizer? Que ela o ama? Que o perdoou? Que quer seguir vivendo de acordo com os planos que ele sempre fez para ela? Não há como saber. Eu adoraria ver uma análise mais profunda feita por um profissional da área da saúde mental.
"O sétimo véu" é um drama psicológico interessantíssimo e muito bem feito - inclusive, deu aos roteiristas Muriel Box e Sydney Box o Oscar de melhor roteiro original. Não é exatamente uma opção para quem quer se divertir ou se deliciar com uma história de amor, embora os protagonistas formem um par muito sedutor. É um filme para quem gosta de pensar, refletir e congregar mil possibilidades, assim como eu fiz ao longo deste texto.
Um comentário:
Eita, Ana, que texto maravilhoso! Você conseguiu tratar o filme literariamente como ele merece. Com maestria.
Estou muito orgulhosa e obrigada pela citação!
Um abraço
Dani
www.telaprateada.blogspot.com
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