Grande parte dos ritmos musicais, em especial os de maior apelo popular, têm raiz negra: o rock'n'roll, o blues, o jazz, a soul music, o rhythm and blues, o rap, hip hop, o reggae, a disco music; no Brasil destacam-se o samba, o axé, o pagode, o funk; todos nasceram da lamúria do povo negro que, oprimido durante séculos, encontrava na música, na arte e na dança a sua forma de expressar o sofrimento e tentar manter vivas as suas origens africanas.
"A simbolização do negro africano
Recorda o manto, hargalo de dor
O negro batendo na palma da mão este canto
Este canto é a sua origem e cintila a cor
(...)
O negro se farta do fruto da sua beleza
Atribui-se também a ele esta sua grandeza
Ilê Ayê
Sendo a própria razão, que a razão não pode explicar
Ecoa-se até o firmamento este nosso cantar"
('Canto da cor', Banda Reflexus)
A implantação da escravidão negra, pode-se dizer, foi quase um tiro no pé, nos Estados Unidos e no Brasil. O preço de poder contar com mão de obra ágil e gratuita foi ter que lidar com a marginalidade, que gerou os problemas que até hoje preocupam os governos e exigem deles enormes gastos e investimentos, como a violência e o tráfico de drogas. Curiosamente, deste mesmo setor em que brotam os gérmens de várias mazelas sociais, provêm também os estilos e as personalidades que ditam as regras da cena cultural do país todo.
Nos Estados Unidos, um dos países onde mais se sente a discriminação e segregação racial até os dias atuais, a escravidão foi extinta durante a Guerra Civil dos anos 1860. Liberdade, porém, não é garantia de felicidade, pois os negros, sem ter para onde ir ou que fazer para alcançarem qualidade de vida similar à da maioria branca, amontoaram-se nas periferias, formando gangues, traficando drogas e roubando carros para sobreviver. Contavam seus dramas através do rap, até descobrirem que podiam também ganhar dinheiro com isso.
Então, cerca de 130 anos depois do fim da escravidão, o gangsta rap domina as paradas musicais dos EUA, rappers como Tupac (na costa oeste) e Notorius B.I.G. (na costa leste) vendem milhões de cópias e convertem-se em heróis do povo negro, com suas letras que falam sobre a vida na periferia e as dificuldades dos negros que precisam recorrer ao estilo de vida ilícito para conquistar algum dinheiro e respeito. Em "Fuck tha police", o grupo N.W.A. (abreviação para "Niggas with attitude"'; em tradução livre: "Pretos com atitude" - vale dizer que a expressão "nigga", em inglês, é de cunho extremamente racista e pejorativo) pragueja contra a força policial que perseguia negros de classe baixa de forma generalizada ("O jovem negro se fode porque é escuro, e não da outra cor, então a polícia acha que tem autoridade para matar a minoria / Fodam-se, pois não serei o único a ser pego por estes safados que andam com um distintivo e uma arma / Querem me ferrar porque sou jovem e tenho um pouco de ouro e um pager, olham no meu carro, procurando algum produto, pensam que todo negro vende narcóticos"). É um verdadeiro protesto negro contra o preconceito difundido em uma instituição cuja finalidade era justamente reprimir esta parcela da população. Há de se convir que, em grande parte dos casos, a suspeita policial era justificável, se se constatar que a ascensão financeira dos negros das periferias americanas coincidia com sua ingressão no mundo da criminalidade.
No filme de 2009 que conta a história da vida de Notorius B.I.G., há uma cena em que vemo-los junto a Tupac (em uma época em que os dois ainda não eram inimigos) dizendo coisas do tipo: "Hoje temos milhões de dólares, vendemos milhões de álbuns, e pagamos nossas putas com o dinheiro de vocês". Desde então, o hip hop divide o trono da cena musical com o pop até os dias atuais, e a mesma classe média e alta branca que segregava os negros no século passado, hoje alimenta suas popularidades e consome suas músicas.
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"Casa de Negros", litografia colorida a mão de Johann Moritz Rugendas |
No Brasil, não foi diferente. Negros africanos, juntamente com índios nativos, foram feitos de escravos desde o período colonial até o fim do período imperial. "Libertados" pela Lei Áurea, assinada em 1888 (o que fez do Brasil o último país independente da América a abolir a escravidão), a alforria não lhes trouxe inclusivamente condições de estabelecerem-se de forma digna. É verdade que muito já foi conquistado, mas ainda hoje, vemos nas favelas de grandes cidades como Salvador e Rio de Janeiro o semblante de um povo que foi tirado à força de sua pátria e jogado em uma terra desconhecida para ser feito de joguete. Desamarrada a corda, as marionetes não tinham como saber o que fazer.
Como reflexo desta realidade, vemos as grandes organizações criminosas nas favelas, o tráfico de drogas, a violência. Sem dúvida, a análise mais interessante é a da traficância, que segue a mesma regra do hip hop americano descrito acima e gerou o enredo do filme de enorme sucesso "Tropa de Elite 1": os negros e pobres das favelas elaboram os esquemas de vendas de drogas, que por sua vez, são sustentados pelos vícios dos brancos da classe média.
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O personagem Capitão Nascimento, do filme "Tropa de Elite 1", dizendo a um usuário de drogas da classe média carioca: "Você, que compra a droga, é quem financia o tráfico no morro" |
Até parece que a história segue sempre o mesmo ritmo: um pequeno e poderoso grupo tiraniza e abusa de uma maioria fraca, que dá o troco fazendo seus opressores de reféns.
O fato é que, como muitíssimo bem pontua Eduardo Galeano em seu clássico "As veias abertas da América Latina", e como ilustra a triste e bela canção "Cidadão", de Zé Geraldo ("Pra aumentar meu tédio, eu nem posso olhar pro prédio que eu ajudei a fazer / (...) Hoje o homem criou asas, e na maioria das casas, eu também não posso entrar"), as pessoas cujas mãos são responsáveis pela edificação das nações não se beneficiam das coisas que elas próprias constroem.
"Holanda, França - estimulam a competição entre o cacau africano e o que Brasil e Equador produzem, para comer chocolate mais barato. Provocam, assim, dispondo como dispõem dos preços, períodos de depressão que lançam nas estradas os trabalhadores que o cacau expulsa. Os desempregados procuram árvores para sob elas dormir e bananas verdes para enganar a fome: não comem, certamente, os finos chocolates europeus que o Brasil, terceiro produtor mundial de cacau, importa incrivelmente da França e da Suíça."
(Galeano, em 'As veias abertas da América Latina', Primeira Parte, capítulo II)
"Apartheid" no Carnaval baiano |
Agora, em época de Carnaval, especialmente na Bahia, notamos um peculiar viés desta disparidade. A festa popular que outrora era palco de expressão da cultura baiana, que é essencialmente africana, não dá espaço aos baianos e negros para brincarem e gozarem. O Carnaval da Bahia elitizou-se, virou objeto de comércio, chamariz de mídia, isca para turistas. Quem hoje comanda a festa dirigida aos ricos esquece-se que ela só surgiu por causa dos pobres. A Doutora Marília Lomanto Veloso chegou a descrever a situação como "seletividade em uma ilha de brancos cercada por uma corda de negras", chamando o Carnaval baiano de apartheid, em artigo escrito a respeito (http://www.gerivaldoneiva.com/2009/02/noticias-do-carnaval-de-salvador.html).
"O folião está ficando de fora e eu acho que nós, artistas, é que temos muito a ver com isso porque a gente inverteu um pouco a lógica da coisa. O Carnaval da Bahia só virou o que virou porque a gente tocava para o folião, para o povo. E povo, ainda demagogicamente falando, não é povo sem corda, não: é povo de bloco. E hoje não se toca mais para isso. Hoje se toca para camarote, para a mídia, você toca para onde tem câmera de televisão, onde tem o site mais importante, então, o carnaval mudou o foco. Nós que fazemos a festa não estamos mais preocupados em agradar quem nos acompanhava." (Cantor Ricardo Chaves, em entrevista ao site Bahia Notícias: http://www.bahianoticias.com.br/holofote/entrevista/145-ricardo-chaves-convoca-artistas-a-repensarem-o-carnaval-e-diz-que-sempre-sofreu-preconceito.html)
Os baianos pobres retrucam a sua exclusão e discriminação com violência e hostilidade. Em todo Carnaval, vemos lamentáveis cenas de pancadaria nas chamadas "pipocas" (alas em que ficam os foliões não participantes dos grandes blocos carnavalescos), que culminam em prisões em massa.
O negro transforma-se em algoz após cansar de ser vítima. Explorado por séculos a fio, revolta-se contra o sistema que nega-lhe o direito de viver tão bem quanto aqueles para os quais trabalhou.
"Pois o sangue desses negros
Derramavam na terra
Para que os senhores passassem
Um tipo de vida melhor"
('Serpente negra', Banda Reflexus)
Hoje, sofremos com o desencadeamento da subjugação à qual os negros foram submetidos, e ao mesmo tempo, saciamo-nos com a cultura e lazer cujas fontes muitas vezes remetem-nos à própria história deles. O negro continua constituindo a força das nações, atuando na base das pirâmides sociais, e fornecendo o entretenimento (ou o ópio) de quem está no topo. Muitos conseguem, assim, ascender socialmente. Outros, irresignados, não conseguem, e atacam da forma que podem: cometendo crimes, para garantirem suas próprias vidas ou a morte de quem os incomoda.

"Muita fé, muita coragem
Tanta garra, quanto amor
Pra trazer toda a justiça
Que o negro tanto sonhou"
('Chicote não', Banda Reflexus)
('Chicote não', Banda Reflexus)