"Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre
Em nosso espírito sofrer pedras e setas
Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,
Ou insurgir-nos contra um mar de provações
E em luta pôr-lhes fim?
(...)
O pensamento assim nos acovarda, e assim
É que se cobre a tez normal da decisão
Com o tom pálido e enfermo da melancolia;
E desde que nos prendam tais cogitações,
Empresas de alto escopo e que bem alto planam
Desviam-se de rumo e cessam até mesmo
De se chamar ação."
(Shakespeare, em 'Hamlet', Terceiro Ato)
Não tem jeito, essa é a vida. Em algum momento ou outro, temos que fazer escolhas e tomar decisões. É inevitável e não se pode fugir disso. Ou você faz escolhas enquanto é cedo e então passa a pautar toda a sua vida com base nelas, ou leva a vida sem maiores preocupações até chegar o instante em que a vida te força a decidir.
Eu escolhi ser precavida. Fiz escolhas muito significativas enquanto ainda era muito jovem, e desde então tenho lidado com os ônus e vantagens delas. Por pouquíssimas vezes desviei-me do meu caminho escolhido, e mesmo quando o fiz, não foi suficientemente grave a ponto de trazer prejuízos à caminhada.
'I choose a road when I was young... If I had a chance to go back now would I redeem my moral vows or would I repeat for my own laughter?'
'Eu escolhi uma estrada quando eu era jovem... Se eu tivesse a chance de voltar atrás, eu me redimiria de meus valores morais ou repetiria tudo apenas para minha diversão?'
("Sometimes", No Doubt)
Toda escolha implica em renúncias, eu sei. Eu renunciei a uma parte supostamente natural da vida para poder realizar meus ideais. Houve vezes em que sofri, não nego; porém, de uma maneira geral, fui feliz. Sinceramente, fui muito feliz. Encontrei prazer no que acredito ser correto sem precisar passar por todos os estágios. Queimei algumas etapas, mas foi benéfico, pois agora vejo que estou alcançando a linha de chegada ao mesmo tempo em que o restante das pessoas (estou sendo modesta? Há quem diga que alcancei primeiro).
"To be or not to be", obra de Raceanu Mihai Adrian |
Tenho me saído muito bem. Até agora tem sido fácil aguentar. As recompensas têm sido infinitamente maiores que os fardos. Entretanto, algo me desassossega: quem me garante que o futuro também será assim? Será que será sempre fácil? Nunca foi extremamente fácil, mas também nunca foi muito difícil. Continuará sendo assim? A tendência natural das coisas é que elas se tornem mais difíceis. Definitivamente, vai ficar mais difícil com o tempo. E no futuro, provavelmente não terei as compensações que tenho hoje. Então como é que vou conseguir manter a pose?
O ensaio está terminando, e logo vai começar o show. Chamariam-me disciplinada e diligente por eu ter levado o ensaio tão a sério, mas agora que chegou a hora de fazer as coisas de um jeito realmente sério, pergunto-me se não deveria ter sido um pouco mais relaxada.
Estou sendo testada. Não pode ser coincidência que estas oportunidades apareçam justamente no período mais propício para me arrepender de aproveitá-las (ou de recusá-las).
Mas quem é que falou em oportunidades? Elas existem mesmo, ou são só criação da minha imaginação? Quando se quer que algo aconteça, é possível criar as condições adequadas para que ela aconteça. Será que é isto que estou fazendo? Pensamento é matéria.
A realidade é mesmo um pouco diferente da imaginação. Fico frustrada quando uma não corresponde à outra.
Não tem jeito, há pouco a ser feito quando a possibilidade é mesmo negada. Se me fosse concedida, será que eu resistiria? Às vezes penso que a graça é ver até onde consigo me controlar... Talvez por isto há momentos em que costumo provocar a situação, só para ver até onde ela é capaz de ir. Nunca cheguei ao ponto em que meu autocontrole é verdadeiramente colocado em xeque. Mas será que consigo mesmo me controlar? Acho que nunca me vi diante do ápice, mas se ele chegasse, será que eu resistiria? Dizem que Deus não dá asas a cobras. Isto deve significar algo.
Estou sendo testada. Não pode ser coincidência que estas oportunidades apareçam justamente no período mais propício para me arrepender de aproveitá-las (ou de recusá-las).
Mas quem é que falou em oportunidades? Elas existem mesmo, ou são só criação da minha imaginação? Quando se quer que algo aconteça, é possível criar as condições adequadas para que ela aconteça. Será que é isto que estou fazendo? Pensamento é matéria.
A realidade é mesmo um pouco diferente da imaginação. Fico frustrada quando uma não corresponde à outra.
Não tem jeito, há pouco a ser feito quando a possibilidade é mesmo negada. Se me fosse concedida, será que eu resistiria? Às vezes penso que a graça é ver até onde consigo me controlar... Talvez por isto há momentos em que costumo provocar a situação, só para ver até onde ela é capaz de ir. Nunca cheguei ao ponto em que meu autocontrole é verdadeiramente colocado em xeque. Mas será que consigo mesmo me controlar? Acho que nunca me vi diante do ápice, mas se ele chegasse, será que eu resistiria? Dizem que Deus não dá asas a cobras. Isto deve significar algo.
'You push and shove... I take the bait... It's a risky business, gonna play it anyway'
("Push and shove", No Doubt)
O problema não é externo, ele vem de dentro. Embora os estímulos venham de fora, os impulsos e sensações residem em nós. Sou capaz de me defender de mim mesma?
Estaria eu tentando testar a mim mesma? É evidente que estou passando por um momento crucial na vida de qualquer ser humano, e ele coincide com o advento destes questionamentos e destas sensações tortuosas. Seria tudo isto uma prova? Estou eu querendo saber se estou preparada para o futuro que me espera?
Seja lá o que for, é angustiante. Nunca fico satisfeita com a forma como as coisas se deslindam. Quando quero, não acontece. Quando acontece, não quero. Quando coincide de acontecer e eu querer, recuso-me a aceitar, e depois fico remoendo, pensando se deveria ter aceitado. Mas, por outro lado, se eu tivesse aceitado, também ficaria remoendo, arrependida. O que é mesmo que eu quero?
Eu me esforço para manter esta imagem, pois é o que ditam os meus princípios, e ainda há o bônus de eu parecer interessante. Mas, em razão disso, dessa obsessão por ser tão como sou, acabo me tornando uma versão exagerada de mim mesma. Em contrapartida, causo a reação planejada, mas não usufruo disso, pois o mesmo trunfo que atrai o desejado acaba também repelindo-o. Meu jeito de ser é minha ventura e meu infortúnio ao mesmo tempo.
'Às vezes escondo alguma coisa, como uma lâmpada atrás da sombra
E às vezes me pergunto por quê
É por que as luzes estão muito fortes?
Ou é porque meus olhos estão fechados demais?'
'Sometimes I hide somewhat
Like a bulb behind a shade
And sometimes I ask myself why
Is it 'cause the lights are too bright
Or because my eyes are closed too tight'
("Sometimes", No Doubt)
Tenho descoberto que, ao menos para mim, é mais difícil querer ser coerente do que efetivamente ser coerente. É em nome da coerência que não me permito mostrar algumas das minhas fraquezas. E a cada vez que me abstenho de evidenciá-las, perco a chance de saber como seria o processo de superar a fraqueza e conquistar a força, e de saber como eu seria vista quando me vissem tão exposta.
Eu poderia esquecer tudo isto e simplesmente fazer o que quer que sentisse vontade de fazer, mas e como ficariam todas as coisas em que acredito?, tudo que conquistei? Sou capaz de jogar tudo para o alto apenas para experimentar a sensação?, apenas para ver como seria? E se fosse, será que faria isso mesmo? Será que valeria a pena?
Vanglorio-me tanto da minha distinção, de ser diferente, de ter gostos e hábitos diferentes, mas no fim das contas, não sou melhor que ninguém. Critico as pessoas que afogam as mágoas e as alegrias no álcool, pois nesse mal não incorro, mas nem por isso sou superior, pois tenho também os meus maus costumes. Não sou muito diferente de ninguém. Julgo-me mais madura que os demais por me identificar com os ideais dos jovens de outrora, aqueles que se preocupavam com princípios e valores, mas hoje, na vida real, na minha vida, quando é hora de me impor e impostar a voz para gritar a verdade, sou covarde. Eu não teria peito para enfrentar a repressão à liberdade de expressão, ou para protestar contra um governo ditatorial. Considero-me tão nobre, mas são eles, os imbecis que eu critico, eles é que têm coragem de falar o que pensam e viver a vida do jeito que querem. São eles que dão a cara a tapa todos os dias, enquanto eu fico aqui me escondendo sob uma máscara que me exibe melhor do que realmente sou.
E estas reflexões só me vêm à mente porque está chegando ao fim o tempo em que ainda se pode errar. A era para a qual me preparei durante a vida toda está finalmente chegando. Saberei como me portar? Terei fôlego para continuar sendo o melhor de tudo que sempre fui, ou melhor ainda? Continuarei satisfeita e resignada por ser o que escolhi ser?
Agora já não adianta reavaliar meus atos, porque não posso refazê-los, e também porque não há o menor sentido em tentar me arrepender, pois não há nada de que eu deva me arrepender. Estou orgulhosa de tudo que fiz, de como procedi, das sementes que lancei, dos frutos que colhi, e estou feliz em saber que há muitos outros frutos preciosos a serem colhidos. E danem-se estes ímpetos de agora. Amanhã eles não valerão mais nada.
Agora já não adianta reavaliar meus atos, porque não posso refazê-los, e também porque não há o menor sentido em tentar me arrepender, pois não há nada de que eu deva me arrepender. Estou orgulhosa de tudo que fiz, de como procedi, das sementes que lancei, dos frutos que colhi, e estou feliz em saber que há muitos outros frutos preciosos a serem colhidos. E danem-se estes ímpetos de agora. Amanhã eles não valerão mais nada.
"A única salvação do que é diferente é ser diferente até o fim, com todo o valor, todo o vigor e toda a rija impassibilidade; tomar as atitudes que ninguém toma e usar os meios de que ninguém usa; não ceder a pressões, nem aos afagos, nem às ternuras, nem aos rancores; ser ele; não quebrar as leis eternas, as não-escritas, ante a lei passageira ou os caprichos do momento; no fim de todas as batalhas — batalhas para os outros, não para ele, que as percebe — há-de provocar o respeito e dominar as lembranças; teve a coragem de ser cão entre as ovelhas; nunca baliu; e elas um dia hão-de reconhecer que foi ele o mais forte e as soube em qualquer tempo defender dos ataques dos lobos."
(Agostinho da Silva, in 'Diário de Alcestes')
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