terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Opressão e vingança do povo negro

Grande parte dos ritmos musicais, em especial os de maior apelo popular, têm raiz negra: o rock'n'roll, o blues, o jazz, a soul music, o rhythm and blues, o rap, hip hop, o reggae, a disco music; no Brasil destacam-se o samba, o axé, o pagode, o funk; todos nasceram da lamúria do povo negro que, oprimido durante séculos, encontrava na música, na arte e na dança a sua forma de expressar o sofrimento e tentar manter vivas as suas origens africanas.


"A simbolização do negro africano
Recorda o manto, hargalo de dor
O negro batendo na palma da mão este canto
Este canto é a sua origem e cintila a cor
(...)

O negro se farta do fruto da sua beleza
Atribui-se também a ele esta sua grandeza
Ilê Ayê

Sendo a própria razão, que a razão não pode explicar
Ecoa-se até o firmamento este nosso cantar"
('Canto da cor', Banda Reflexus)


A implantação da escravidão negra, pode-se dizer, foi quase um tiro no pé, nos Estados Unidos e no Brasil. O preço de poder contar com mão de obra ágil e gratuita foi ter que lidar com a marginalidade, que gerou os problemas que até hoje preocupam os governos e exigem deles enormes gastos e investimentos, como a violência e o tráfico de drogas. Curiosamente, deste mesmo setor em que brotam os gérmens de várias mazelas sociais, provêm também os estilos e as personalidades que ditam as regras da cena cultural do país todo.

Nos Estados Unidos, um dos países onde mais se sente a discriminação e segregação racial até os dias atuais, a escravidão foi extinta durante a Guerra Civil dos anos 1860. Liberdade, porém, não é garantia de felicidade, pois os negros, sem ter para onde ir ou que fazer para alcançarem qualidade de vida similar à da maioria branca, amontoaram-se nas periferias, formando gangues, traficando drogas e roubando carros para sobreviver. Contavam seus dramas através do rap, até descobrirem que podiam também ganhar dinheiro com isso. 

Então, cerca de 130 anos depois do fim da escravidão, o gangsta rap domina as paradas musicais dos EUA, rappers como Tupac (na costa oeste) e Notorius B.I.G. (na costa leste) vendem milhões de cópias e convertem-se em heróis do povo negro, com suas letras que falam sobre a vida na periferia e as dificuldades dos negros que precisam recorrer ao estilo de vida ilícito para conquistar algum dinheiro e respeito. Em "Fuck tha police", o grupo N.W.A. (abreviação para "Niggas with attitude"'; em tradução livre: "Pretos com atitude" - vale dizer que a expressão "nigga", em inglês, é de cunho extremamente racista e pejorativo) pragueja contra a força policial que perseguia negros de classe baixa de forma generalizada ("O jovem negro se fode porque é escuro, e não da outra cor, então a polícia acha que tem autoridade para matar a minoria / Fodam-se, pois não serei o único a ser pego por estes safados que andam com um distintivo e uma arma / Querem me ferrar porque sou jovem e tenho um pouco de ouro e um pager, olham no meu carro, procurando algum produto, pensam que todo negro vende narcóticos"). É um verdadeiro protesto negro contra o preconceito difundido em uma instituição cuja finalidade era justamente reprimir esta parcela da população. Há de se convir que, em grande parte dos casos, a suspeita policial era justificável, se se constatar que a ascensão financeira dos negros das periferias americanas coincidia com sua ingressão no mundo da criminalidade.

No filme de 2009 que conta a história da vida de Notorius B.I.G., há uma cena em que vemo-los junto a Tupac (em uma época em que os dois ainda não eram inimigos) dizendo coisas do tipo: "Hoje temos milhões de dólares, vendemos milhões de álbuns, e pagamos nossas putas com o dinheiro de vocês". Desde então, o hip hop divide o trono da cena musical com o pop até os dias atuais, e a mesma classe média e alta branca que segregava os negros no século passado, hoje alimenta suas popularidades e consome suas músicas. 

"Casa de Negros", litografia colorida a mão de
Johann Moritz Rugendas
No Brasil, não foi diferente. Negros africanos, juntamente com índios nativos, foram feitos de escravos desde o período colonial até o fim do período imperial. "Libertados" pela Lei Áurea, assinada em 1888 (o que fez do Brasil o último país independente da América a abolir a escravidão), a alforria não lhes trouxe inclusivamente condições de estabelecerem-se de forma digna. É verdade que muito já foi conquistado, mas ainda hoje, vemos nas favelas de grandes cidades como Salvador e Rio de Janeiro o semblante de um povo que foi tirado à força de sua pátria e jogado em uma terra desconhecida para ser feito de joguete. Desamarrada a corda, as marionetes não tinham como saber o que fazer. 

Cena do último episódio da novela brasileira "Sinhá Moça", mostrando o momento
da libertação dos escravos negros, estampada com a frase: "E de tudo que plantaram, nada lhes restou... Nem da terra, nem dos frutos. Apenas a liberdade"

Como reflexo desta realidade, vemos as grandes organizações criminosas nas favelas, o tráfico de drogas, a violência. Sem dúvida, a análise mais interessante é a da traficância, que segue a mesma regra do hip hop americano descrito acima e gerou o enredo do filme de enorme sucesso "Tropa de Elite 1": os negros e pobres das favelas elaboram os esquemas de vendas de drogas, que por sua vez, são sustentados pelos vícios dos brancos da classe média. 


O personagem Capitão Nascimento, do filme "Tropa de Elite 1", dizendo a um usuário de drogas da classe média carioca: "Você, que compra a droga, é quem financia o tráfico no morro"

Até parece que a história segue sempre o mesmo ritmo: um pequeno e poderoso grupo tiraniza e abusa de uma maioria fraca, que dá o troco fazendo seus opressores de reféns.

O fato é que, como muitíssimo bem pontua Eduardo Galeano em seu clássico "As veias abertas da América Latina", e como ilustra a triste e bela canção "Cidadão", de Zé Geraldo ("Pra aumentar meu tédio, eu nem posso olhar pro prédio que eu ajudei a fazer / (...) Hoje o homem criou asas, e na maioria das casas, eu também não posso entrar"), as pessoas cujas mãos são responsáveis pela edificação das nações não se beneficiam das coisas que elas próprias constroem. 


"Holanda, França - estimulam a competição entre o cacau africano e o que Brasil e Equador produzem, para comer chocolate mais barato. Provocam, assim, dispondo como dispõem dos preços, períodos de depressão que lançam nas estradas os trabalhadores que o cacau expulsa. Os desempregados procuram árvores para sob elas dormir e bananas verdes para enganar a fome: não comem, certamente, os finos chocolates europeus que o Brasil, terceiro produtor mundial de cacau, importa incrivelmente da França e da Suíça."
(Galeano, em 'As veias abertas da América Latina',  Primeira Parte, capítulo II)


"Apartheid" no Carnaval baiano
Agora, em época de Carnaval, especialmente na Bahia, notamos um peculiar viés desta disparidade. A festa popular que outrora era palco de expressão da cultura baiana, que é essencialmente africana, não dá espaço aos baianos e negros para brincarem e gozarem. O Carnaval da Bahia elitizou-se, virou objeto de comércio, chamariz de mídia, isca para turistas. Quem hoje comanda a festa dirigida aos ricos esquece-se que ela só surgiu por causa dos pobres. A Doutora Marília Lomanto Veloso chegou a descrever a situação como "seletividade em uma ilha de brancos cercada por uma corda de negras", chamando o Carnaval baiano de apartheid, em artigo escrito a respeito (http://www.gerivaldoneiva.com/2009/02/noticias-do-carnaval-de-salvador.html). 


"O folião está ficando de fora e eu acho que nós, artistas, é que temos muito a ver com isso porque a gente inverteu um pouco a lógica da coisa. O Carnaval da Bahia só virou o que virou porque a gente tocava para o folião, para o povo. E povo, ainda demagogicamente falando, não é povo sem corda, não: é povo de bloco. E hoje não se toca mais para isso. Hoje se toca para camarote, para a mídia, você toca para onde tem câmera de televisão, onde tem o site mais importante, então, o carnaval mudou o foco. Nós que fazemos a festa não estamos mais preocupados em agradar quem nos acompanhava." (Cantor Ricardo Chaves, em entrevista ao site Bahia Notícias: http://www.bahianoticias.com.br/holofote/entrevista/145-ricardo-chaves-convoca-artistas-a-repensarem-o-carnaval-e-diz-que-sempre-sofreu-preconceito.html

Os baianos pobres retrucam a sua exclusão e discriminação com violência e hostilidade. Em todo Carnaval, vemos lamentáveis cenas de pancadaria nas chamadas "pipocas" (alas em que ficam os foliões não participantes dos grandes blocos carnavalescos), que culminam em prisões em massa. 

O negro transforma-se em algoz após cansar de ser vítima. Explorado por séculos a fio,  revolta-se contra o sistema que nega-lhe o direito de viver tão bem quanto aqueles para os quais trabalhou. 

"Pois o sangue desses negros
Derramavam na terra
Para que os senhores passassem
Um tipo de vida melhor"
('Serpente negra', Banda Reflexus)

Hoje, sofremos com o desencadeamento da subjugação à qual os negros foram submetidos, e ao mesmo tempo, saciamo-nos com a cultura e lazer cujas fontes muitas vezes remetem-nos à própria história deles. O negro continua constituindo a força das nações, atuando na base das pirâmides sociais, e fornecendo o entretenimento (ou o ópio) de quem está no topo. Muitos conseguem, assim, ascender socialmente. Outros, irresignados, não conseguem, e atacam da forma que podem: cometendo crimes, para garantirem suas próprias vidas ou a morte de quem os incomoda.

Violência e crueldade não se justificam; todavia, é também importante procurar saber o que há por trás das chagas da sociedade antes de apontarmos o dedo. A origem dos problemas de toda sociedade está quase sempre na origem da própria sociedade. Os negros foram trazidos ao Brasil como objetos, e por centenas de anos foram tratados assim. É de se esperar que, quando finalmente fossem "alçados ao patamar de seres humanos", ficassem desnorteados. O resultado, trágico, é o que dissemos ao longo de todo o texto. Eis um panorama que já é relativamente menos pesaroso que antigamente, mas ainda pouco satisfatório, pois assim como levou tempo para a escravidão ser abolida (em termos legais; haja visto que, na realidade fática, ainda encontramos resquícios dela), ainda vai levar algum tempo para as consequências dela serem convalescidas, ou ao menos, amenizadas.





"Muita fé, muita coragem
Tanta garra, quanto amor
Pra trazer toda a justiça
Que o negro tanto sonhou"
('Chicote não', Banda Reflexus)

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