quinta-feira, 7 de junho de 2012

Pelo direito de não ser incompreendido por quem acha que já compreendeu tudo

Diante de tantas probabilidades de conspirações, ameaças e conluios voltados à alienação, o fato de eu me manter tranquila e agarrada às minhas convicções causa-te espanto. Não sou surda, cega, analfabeta ou alienada; não estou indiferente a todos os falatórios e teorias; eles simplesmente não foram capazes de abalar minhas crenças. E se a minha insistência na fé te parece sinal de ingenuidade ou ignorância, é porque partes do princípio de que qualquer um que não creia em tudo que tu crês precisa conhecer mais afundo as tuas ideias. Não te passa pela mente a possibilidade de eu já conhecê-las e ainda assim dar mais crédito a uma ideologia distinta da tua? 

Falas tanto da existência de forças e pessoas que andam a fazer lavagens cerebrais nas massas, mas não vês que tua postura se assimila à de alguém que quer também fazer uma lavagem cerebral? Não seria, outrossim, a tua atitude, uma forma de alienação? Sob a justificativa de que queres abrir a mente das pessoas, tu tentas incutir nelas várias concepções que podem ser tão inverídicas quanto as que tu condenas. Esqueces-te que, da mesma forma, já houve quem quisesse alcançar objetivos invirtuosos por meio da pregação de ideias supostamente libertadoras?

Minha fé não é cega, tampouco faz com que eu o seja. Estou aberta a diferentes hipóteses e novas formas de pensar. Posso me permitir entrar em contato com coisas que vão totalmente de encontro ao que acredito, exatamente porque acredito profundamente. Os princípios estão arraigados em mim, imanentes ao meu ser, não se trata de teses que eu preciso defender para mim mesma a fim de me manter crente. E, em verdade, confio tanto nas coisas em que creio que sequer tenho medo de vê-las confrontadas. Por isso decidi dedicar-me à análise do que dizes. De fato, já gastei tempo avaliando teus argumentos, e confesso que os escutei com cabeça aberta e parcialidade. Pensei, refleti, e cá estou: não abri mão de nada do que acreditava antes. Continuo firme e confiante, e é por este motivo - e somente por este - que não me deixo fascinar com tantas paranoias. "Se um homem tiver realmente muita fé, pode dar-se ao luxo de ser cético", disse Nietzche. 


Prometes-me a revelação da verdade sem preocupares-te em saber se já não a conheço; julgas que não, que não a conheço, e julgas-me assim simplesmente porque discordo de ti. Contudo, se censuras qualquer possibilidade de eu estar correta em minha discordância, é porque reprimes minha liberdade de pensar, é porque queres-me subjugada aos teus conceitos; e agindo assim, equiparas-te àqueles que criticas. 


Antes de tentar vender-me algo, procura saber se desejo comprar; e se eu não desejar, não me julgue mal, porque se o fizerdes, é tu quem está sendo inflexível.


Respeito tua posição e admiro tua coragem em repensar um universo de imposições... Porém, se queres obter êxito em tua luta, precisas manter-te são; e se queres manter-te são, cuida-te para que tuas ideias combativistas não te ceguem, tal qual crês que cegos estão aqueles que tu combates.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Em busca da verdade


"Verdade, mentira, certeza, incerteza…
Aquele cego ali na estrada também conhece estas palavras.
Estou sentado num degrau alto e tenho as mãos apertadas
Sobre o mais alto dos joelhos cruzados.
Bem: verdade, mentira, certeza, incerteza o que são?
O cego pára na estrada,
Desliguei as mãos de cima do joelho
Verdade, mentira, certeza, incerteza são as mesmas?
Qualquer cousa mudou numa parte da realidade — os meus joelhos e as minhas mãos.
Qual é a ciência que tem conhecimento para isto?
O cego continua o seu caminho e eu não faço mais gestos.
Já não é a mesma hora, nem a mesma gente, nem nada igual.
Ser real é isto."
(Alberto Caeiro, "Verdade, mentira", em Poemas Inconjuntos)


Desconfiemos de tudo e todos que não nos permitam a desconfiança. Fujamos de tudo que recrimine a dúvida. Não aceitemos nada que proponha verdades que não podem ser questionadas; afinal, aquilo que não pode ser questionado não é verdade. 

A verdade é receptiva a qualquer pergunta ou desafio, simplesmente por ser verdadeira; e por ser verdade, prova a si mesma pelo simples fato de ser o que é. A verdade comporta indagações e pode ser testada a qualquer momento, porque ela é uma constante, e nunca fornecerá elementos que vão contra a sua própria essência. A mentira, por outro lado, não suporta provocações, pois não é firme. Se interrogada, ela tremulará, cambaleará, não encontrará justificativas para si própria, deixando, com isto, expostas as suas fragilidades.  

"A mentira teme o confronto com a verdade. Aloja-se nas sombras, espraia-se, às escondidas, e encontra, infelizmente, guarida. (...)
A verdade espera... Seus opositores enfermam, envelhecem e morrem, enquanto ela permanece."
("Verdade libertadora", de Joanna de Ângelis, psicografada por Divaldo Pereira Franco, no livro "Sob a proteção de Deus")


A imposição de padrões só é aceitável àqueles que não têm inteira capacidade de discernimento – não à toa as crianças devem obediência aos pais; não à toa os indivíduos absolutamente incapazes para os atos da vida civil (art. 3 do Código Civil) necessitam ser representados. A partir do momento em que o indivíduo adquire consciência de si mesmo e do mundo à sua volta, a partir do momento em que se tem juízo para orientar-se conforme suas próprias concepções, não precisa que se lhe imponham convicções prontas; ele será capaz de formar as suas próprias.

A busca da verdade passa, necessariamente, pelo questionamento, pela dúvida, e até por um pouco de ceticismo. O homem só encontra a verdade depois de muito ter argumentado e contra-argumentado, consigo mesmo ou com outrem. A verdade é como a nota dada ao aluno submetido a uma avaliação: para descobri-la, ele precisa responder às perguntas, passar pelos desafios, enfrentar os exercícios. Ao fim das batalhas contra as incertezas, por baixo dos véus das possibilidades sem-fim, sucessivamente às perguntas: é lá que reside a verdade. Não há como conhecê-la sem antes propor a si próprio uma busca por ela.

"Mas o que vem a ser 'a verdade'? Definimos 'verdade' como a propriedade de uma sentença decidida afirmativamente, ou seja, considerada instância do sistema geral de nossas convicções teóricas. Ao inverso, 'falsidade' é a propriedade de uma sentença decidida negativamente e, portanto, excluída do mesmo sistema. Ora, nossas convicções teóricas são convicções acerca do que é ou existe.
(...)
Podemos determinar a verdade de uma sentença apelando a outras sentenças, fornecendo argumentos. Temos, então, os três elementos exigidos: a opinião, a verdade e as razões. Mas de fato possuímos conhecimento? Se a verdade de uma sentença (digamos, p) foi obtida, por exemplo, mediante uma dedução lógica supondo-se como verdadeiras dadas premissas (digamos, q e se q, então p), um interlocutor descontente com a nossa estratégia poderia indagar se as premissas são verdadeiras. A possível falsidade das premissas determinaria a possível, embora não necessária, falsidade da conclusão. Ou seja, precisaríamos responder ao adversário mediante a oferta de novas razões. Mas novas perguntas conduziriam a novas razões, em um regressus ad infinitum.
No intuito de estancar o processo aparentemente infindo da busca de razões, podemos cair na tentação da fundamentação última: se a verdade de cada uma das sentenças mencionadas é sempre condicionada, buscamos a sentença ou sentenças fundantes e incondicionadamente verdadeiras capazes de garantir a verdade de todas as demais sentenças de nosso sistema de convicções."
(Ernesto Laclau e Niklas Luhmann, "Pós-fundacionismo, abordagem sistêmica e as organizações sociais". EDIPUCRS, 2006, p. 16)


Ninguém entabula contato com a verdade sem antes desejar chegar até a ela. Ainda que alguma determinada circunstância, em um dado momento da vida, escancare a verdade diante de nossos olhos, não saberemos que é a verdade se não estivermos dispostos a querer conhecê-la. Sem a vontade de descobrir a verdade, é possível que ela passe por nós e de nós se escape sem que saibamos. 

E o aspecto mais insano deste processo é constatar quão longa pode ser a busca pela verdade. Ou seria o aspecto mais benéfico? Mais interessante? Afinal, no curso de uma pesquisa, é possível (e é comum!) encontrar muito mais do que aquilo que inicialmente se procurava. Destarte, na busca pela verdade, acabamos também conhecendo um pouco mais de muitas coisas, inclusive de nós mesmos. E a cada novo conhecimento adquirido, novas portas são abertas em nosso ser, pois o fato é que é impossível continuar sendo a mesma pessoa a partir do momento em que se conhece algo novo. 


O conhecimento é um conascimento. De fato, todo conhecimento é o renascimento do objeto conhecido no sujeito conhecedor e, concomitantemente, o renascimento do sujeito conhecedor numa nova forma de ser.” 
(Goffredo Telles Júnior, em "O Direito Quântico". São Paulo: Max Limonad, 1974. P. 141)



Porém, embora se frise a importância de estar aberto à percepção da verdade, não devemos nos desesperar, tampouco desgastar-nos em levar ao extremo esta busca. Para conhecer a verdade não basta querer: é preciso estar maduro para tal. Com vontade, perspicácia e maturidade, ela aparecerá, e no momento oportuno, nós estaremos aptos para enxergá-la. A cada um, segundo sua necessidade e merecimento, ela fulgurará, em seus pertinentes vieses.



A Verdade

"Eu sou o caminho e a verdade." - Jesus. (JOÃO, 14:6.)
Por enquanto, ninguém se atreverá, em boa lógica, a exibir, na Terra, a verdade pura, ante a visão das forças coletivas.
A profunda diversidade das mentes, com a heterogeneidade de caracteres e temperamentos, aspirações e propósitos, impede a exposição da realidade plena ao espírito das massas comuns.
Cada escola religiosa, em razão disso, mantém no mundo cursos diferentes da revelação gradativa. A claridade imaculada não seria, no presente estágio da evolução humana, assimilável por todos, de imediato.
Há que esperar pela passagem das horas. Nos círculos do tempo, a semente, com o esforço do homem, provê o celeiro; e o carvão, com o auxílio da natureza, se converte em diamante.
Por isto, vemos verdades estagnadas nas igrejas dogmáticas, verdades provisórias nas ciências, verdades progressivas nas filosofias, verdades convenientes nas lides políticas e verdades discutíveis em todos os ângulos da vida civilizada.
Semelhante imperativo, porém, para a mentalidade cristã, apenas vigora quanto às massas.
Diante de cada discípulo, no reino individual, Jesus é a verdade sublime e reveladora.
Todo aquele que lhe descobre a luz bendita, absorve-lhe os raios celestes, transformadores... E começa a observar a experiência sob outros prismas, elege mais altos padrões de luta, descortina metas santificantes e identifica-se com horizontes mais largos. O reino do próprio coração passa a gravitar ao redor do novo centro vital, glorioso e eterno. E à medida que se vai desvencilhando das atrações da mentira, cada discípulo do Senhor penetra mais intensivamente na órbita da Verdade, que é a Pura Luz.
XAVIER, Francisco Cândido. Vinha de Luz. Pelo Espírito Emmanuel. 14.ed. Rio de Janeiro, RJ: FEB, 1996. Capítulo 175.

Ingenuidade versus paranoia

Nada de extremos: nem ingenuidade demais, nem psicose demais! É preciso equilíbrio, e a fonte do equilíbrio é a crença em uma verdade superior à nossa vã realidade.


Não sou tão inocente a ponto de crer que a vida é realmente este mar de rosa que muitos pintam, mas também não sou tão paranoica a ponto de crer que há uma má intenção por trás de tudo, como muitos crêem. Bem e mal coexistem, estou certa. E ainda que ainda prevaleça o mal, é possível viver no bem. E ainda que convivamos com tantos convites à corrupção, é possível conservar a virtuosidade. E ainda que a maioria das opções que o mundo nos oferece não passe de aliciamento para a imoralidade, é possível protegermo-nos. Basta que não deixemos de manter viva a nossa fé, na crença sincera de que o amor é superior a todas e quaisquer forças que atentem contra ele.




"Não se diga que no homem estão conflitantes as duas forças: a do bem e a do mal.

Gerado pelo Divino Amor, está o homem fadado ao Amor.

O bem, nele ínsito, é a preservação da vida, o estímulo para a vida, a geratriz da vida. É a luta para que a vida se mantenha.
O mal é a negação disto, que o indivíduo elege, porque se deixa dominar pelos instintos primevos, constitutivos da ação orgânica sobre o hálito divino que vitaliza o corpo. 
Eleger a condição em que prefere transitar, é opção livre de cada um. 
Por isso, cumpre-nos modificar a paisagem vigente no mundo pela aceitação do bem, que é um impulso natural da vida e o destino compulsório do ser. 
Assim reflexionando, não dês guarida às injunções primitivas de que estás tentando libertar-te. Esforça-te pela opção positiva, como te inclinas para as tendências de supremacia de mando, de primarismo, de governança, de destemor, de posse, a que te arrojas, muitas vezes, insensata e desequilibradamente."

(Fragmento da mensagem "Ante o bem e o mal", do livro "Oferenda", de Joanna Ângelis, psicografado por Divaldo Pereira Franco)

sábado, 2 de junho de 2012

Análise do filme "O sétimo véu"




"A mente humana é como Salomé no início de sua dança, escondida por sete véus - véus da inibição, da timidez, do medo. Com os amigos, a pessoa pode tirar um véu, depois outro, talvez três ou quatro véus. Com a pessoa amada, ela tira cinco ou até seis véus... Mas nunca o sétimo. A mente humana gosta de cobrir sua nudez. Você nunca conseguirá adentrar na mente humana. Por isso eu uso a narcose." - Dr. Larsen, no filme "O sétimo véu"


Assisti ontem ao filme "O sétimo véu", uma pequena obra prima de 1945, dirigida por Compton Bennett, trazendo os fabulosos Ann Todd e James Mason nos papéis principais. Resolvi assistir porque a sinopse chamou a minha atenção: uma famosa pianista, após sofrer um acidente, não consegue mais tocar, porém um psiquiatra acredita que seu problema seja de ordem psicológica, e resolve hipnotizá-la para conhecer a história de sua vida. Gosto de dramas, gosto de histórias com pitadas de psicologia, e o filme não me desapontou.


Francesca, a pianista, tem um histórico de frustração e repressão de seus sentimentos. Aos 14 anos, já órfã de mãe, perdeu também o pai, não lhe restando ninguém no mundo a não ser Nicholas, que mal era seu parente (era um parente de seu pai). Nicholas era um homem reservado, rico, estranho e frio, com grande apreço pela música, mas sem dom para executá-la. A Nicholas é confiada a guarda de Francesca, e ela vive em sua casa, sem que no entanto jamais se forme algum vínculo de família ou mesmo amizade entre ambos. As tentativas de aproximar-se de Nicholas ou mesmo de saber a história de sua vida, por parte de Francesca, são infrutíferas, e a menina cresce sem qualquer carinho ou atmosfera acolhedora, o que reforça em sua natureza o caráter sério e tímido, já que desde pequena ela nunca teve nenhum estímulo para ser alegre, vivaz e carinhosa.

Certa feita, através de uma carta de uma professora, Nicholas descobre que Francesca toca piano, e pede para que ela o faça. Tímida e receosa, a menina nega. Porém, quando o próprio começa a entoar uma melodia, ela vai se aproximando e logo mostra o seu talento. Começa então uma empreitada de Nicholas, que visa torná-la uma notória pianista, empenhando todo o seu dinheiro, tempo e esforços em sua educação e promoção de sua carreira.

Ainda na adolescência, Francesca apaixona-se por um rapaz, o também músico Peter, que ensina-a a sorrir, a divertir-se e a aproveitar melhor sua vida. Desejosa de casar-se com ele, desaponta-se com a negativa de Nicholas, que não só não permite que ela se case, como também leva-a embora para outro país, no afã de afastá-la do pretendente e de aprimorar sua educação musical.

Os anos se passam e Francesca, já mulher, consegue a tão aclamada fama e notoriedade que Nicholas sempre almejou para ela. Ela ama a música, mas todo o mais em sua vida é triste, sem cor, sem amor. Ela não tem liberdade, pois Nicholas planeja cada detalhe de sua vida e de sua carreira. Não a permite ter amizades nem amores; só com ele ela sai para jantar e fazer qualquer outra coisa. Ele cuida até mesmo de seu figurino, e sempre a recomenda ter muito cuidado com suas mãos. "Cuide de suas mãos", "nunca machuque suas mãos", "suas mãos são seu tesouro".

Eis que um dia Francesca se apaixona novamente (pelo retratista Max), e novamente Nicholas não dá o seu consentimento. Mas desta vez Francesca já é uma mulher de 24 anos, e Nicholas não tem muitos meios de contê-la. Ela ameaça ir embora com seu pretendente, e Nicholas acusa-a de ser ingrata, por abandonar a pessoa que passou sua vida investindo nela e em seu dom, em detrimento de um homem recém conhecido que mal planejava casar-se com ela. Revoltado, ele bate nas mãos da moça - nas mãos, seu maior tesouro -, fazendo-a chorar e fugir com Max. É nesta fuga que Francesca sofre o acidente de carro que faz com que ela própria acredite que nunca mais poderá tocar.

Entretanto, seu problema é claramente psicológico, já que suas mãos não sofrem grandes lesões.  Posso até dizer que, se houve alguma sequela, é mais decorrente das pauladas dadas com a bengala por Nicholas, do que pelo próprio acidente de carro. Deprimida, frustrada e traumatizada, Francesca tenta suicidar-se, e a partir daí passa a ser tratada pelo Dr. Larsen, o psiquiatra que disse a frase que abre este texto. Larsen opta pelo método hipnótico, mas não descarta a possibilidade da narcose.

"O sétimo véu" tem um bilhão de aspectos interessantes e pode-se dizer que 90% deles não são esclarecidos. No final - que como muitíssimo bem observou Daniele Rodrigues de Moura em sua própria análise sobre o filme ("poderia ser um clichê, mas trabalhado dentro da psicologia, ele surpreende e nos deixa ainda mais intrigados"), o expectador tem uma pista sobre vários dos enigmas da personalidade de Francesca (e, por que não?, de Nicholas também), mas mesmo assim, resta um sem-número de questionamentos não resolvidos.

Não tenho conhecimento algum sobre psicologia e psicanálise, porém, gosto de me atrever a fazer algumas análises. Há várias coisas que me intrigam na história dos personagens principais, e que, segundo minhas próprias crenças, podem ter alguma relação com a formação da personalidade deles, bem como, com a forma com que ambos viveram suas vidas até que tudo culminasse na tentativa de suicídio de Francesca e no final que ela própria escolhe para si. Algumas destas coisas:

* Francesca sempre teve um espírito genioso, caráter forte, perspicaz e inteligente; entretanto, nada disso impedia que sua alma fosse frágil e impressionável, notavelmente suscetível de ser impactada por outras pessoas. À primeira vista, poder-se-ia dizer que apenas Nicholas era um demonstrativo disto, pois resta inconteste que ele exerce enorme poder sobre Francesca (o próprio psiquiatra reparou nisto), poder este que eu credito não só ao medo que ele infundia nela, mas também ao estranho interesse que ela sentia por ele e que jamais pôde concretizar. Contudo, se repararmos bem, veremos que Francesca sempre foi assim, mesmo antes de conhecer Nicholas. Ao psiquiatra, ela relata um caso em que sua melhor amiga Susan realizou uma travessura na escola, e foi Francesca quem sofreu a punição, punição esta que inclusive prejudicou-se em sua audição para ganhar uma bolsa na escola de música. Sob hipnose, Francesca afirmou que Susan sempre a convencia a fazer coisas que ela não queria, e sempre saía ilesa, ficando o castigo para ela. Por mais inocente que estas historinhas possam parecer, é inegável que causaram grande impacto no espírito de Francesca, e isto fica claro na cena dos momentos anteriores ao primeiro grande recital de Francesca, quando, já adulta, ela reencontra Susan e esta a relembra da história da punição. A dor destas lembranças estorvou Francesca de tal modo que ela mal conseguia encarar a amiga enquanto tocava, e ao fim do show, ela desmaiou de tensão. Para mim, ficou evidente que Susan foi um dos elementos da vida de Francesca que a impediam de ser tudo aquilo que ela queria ser, e outrossim, uma das coisas que a fazia sofrer por nunca receber benefícios quando ela cedia às imposições dos outros (nestes outros, inclua-se Nicholas).

* Nicholas é um personagem curiosíssimo, e sua história não é contada no filme. Tudo o que se sabe é que ele é um homem de posses, que não gosta de falar sobre sua mãe, não se relaciona com os criados e evita contatos íntimos ou qualquer afeto com Francesca. Ele é fechado, distante, severo, mas muito inteligente. Sua personalidade impressiona a jovem Francesca, e ela deseja conhecê-lo melhor, mas não pode. O que ela sempre sentiu por ele era uma estranha mistura de interesse com medo. Ela o admirava e o tinha como um mestre, mas ao mesmo tempo, temia-o e tinha-o como um repressor de tudo que ela poderia viver. 

* Para mim, é interessante o fato de que tanto Francesca quanto Nicholas são órfãos, e embora o filme dê poucos detalhes (propositalmente, creio eu) sobre os pais de ambos, eu imagino que esta ausência dos pais e a dificuldade dos personagens de falar sobre eles influenciou muito na formação de seus caráteres. A mãe de Nicholas foi uma senhora bonita que abandonou o pai de Nicholas para viver com um músico. Curiosa sobre esta história, Francesca pergunta aos criados, que dizem que isto é tudo que sabem. Em seguida, ela condena a atitude da mãe de Nicholas, no que é repreendida pelo criado. "Quem sabe algum dia você não fará o mesmo?", ele diz. Na parede da sala de Nicholas há um retrato pintado de sua mãe, mas ele se recusa a falar sobre ela. Curiosamente, no futuro, quando Francesca já é uma bela mulher e uma pianista aclamada, Nicholas quer que pintem um retrato dela também. Seria também a tentativa de imortalizar uma mulher que ele poderia perder? Coincidentemente, o pintor do retrato vem a ser justamente o homem com quem Francesca planeja fugir, e tais planos amedrontam Nicholas de tal modo que ele abre seu coração (embora ainda com bastante contenção e pouca amabilidade) a ela e diz que a proíbe de ir embora, alegando que ela não poderia abandoná-lo depois de tudo o que fez por ela.

* A obsessão de Nicholas pelas mãos de Francesca também é fonte de muitos questionamentos meus. A parte óbvia é que Nicholas se preocupava com as mãos de sua pupila porque eram fundamentais para o desenvolvimento de seu talento, já que ela tocava piano. Todavia, é interessante investigar isso mais profundamente. A psicologia biodinâmica coloca as mãos, a pele e o tato como representativos da história e da vida de uma pessoa. Wilhelm Reich chegou a dizer que "o corpo é o inconsciente visível". Nesta atmosfera, as mãos entram como um indicativo dos aspectos concernentes ao carinho e à ternura. E se há duas coisas com as quais Nicholas não era acostumado, eram o carinho e a ternura. Mas isso não significa, necessariamente, que ele não as quisesse. No fundo, Nicholas tinha muito medo de ser feliz, e muito medo do amor. Talvez temesse que outra mulher pudesse abandoná-lo como sua mãe o fez. Isto, porém, é muito óbvio. O que não me parece óbvio, mas sim, muito intrigante, é que Nicholas insistisse tanto para que Francesca cuidasse de suas mãos, nunca deixando-as sofrer nenhum machucado. É como se ele estivesse zelando não só pelo seu talento, mas também pela sua capacidade de oferecer carinho a alguém. É como se ele quisesse castrá-la e assenhorear-se de Francesca, retendo para si próprio qualquer possibilidade de ela amar outro homem. Era esquisita a relação de Nicholas com o carinho e o amor. Na primeira vez em que ele vê Francesca, está com um gato em seu colo, afagando-o gato e tocando em seu pêlo. Em seguida, pergunta a Francesca se ela quer acariciar o gato, e ela, muito nervosa, diz que não. Sua negativa frustra Nicholas de uma maneira estranha, e nisto, Francesca admite que odeia gatos. Para mim, é evidente que esta é uma metáfora sobre carinho. Em outra cena, Francesca está agradecida a Nicholas por algum motivo, e o abraça. Nicholas repele veemente o abraço e grita com ela, ordenando que nunca mais faça isso. É muito estranha a forma como ambos lidam com o afeto e em especial com o toque, motivo pelo qual permaneço crendo que a obsessão de Nicholas pelas mãos de Francesca tem um motivo muito maior que o simples desejo de que ele as conserve para tocar piano.

* Outra coisa que ficou transparente para mim, como expectadora do filme, é que Francesca nunca amou Peter nem Max. Eles apenas representavam para ela a possibilidade de ser livre e sair da esfera de domínio de Nicholas para enfim ser feliz, pois Nicholas não permitia que ela fosse feliz. Ele não gostava de ser feliz e também não queria que ela o fosse. Prova disso é a cena de quando ele retorna de viagem e pede para que ela toque algo para ele. A esta altura, Francesca já estava namorando Peter e sentia-se feliz. Então, tocou uma melodia alegre, ao estilo das músicas que ouvia nos restaurantes que frequentava com Peter. A reação de Nicholas à canção animada que Francesca tocou foi enérgica e irritada: "Você está louca? Pedi para você tocar, e não me vir com esse lixo". E assim,  Francesca tocou uma melodia mais séria, que agradou mais Nicholas. Ademais, uma característica de ambos é que nunca sorriam. Francesca queria ser feliz, e para isto precisava livrar-se de Nicholas e da vida que ele lhe proporcionava. Viu em seus dois namorados esta possibilidade, mas Nicholas sempre impôs obstáculos. Sete anos após separar-se do primeiro namorado, Peter, Francesca busca reencontrá-lo, mas a dor mal permite que ela fale sobre este reencontro ao psiquiatra, mesmo sob hipnose. Ao fim do filme, descobrimos que naquela noite Peter revelou a ela que tinha se casado. Francesca ainda tinha esperanças de casar-se (leia-se: ser livre, fugir de Nicholas), e quando soube que isto não seria mais possível, viu seus sonhos morrerem - não porque amasse Peter, mas porque desejava imensamente deixar a vida com Nicholas. Anos depois, ao ser galanteada por Max, o pintor, Francesca nega a si mesma a oportunidade de apaixonar-se por ele. "Eu odeio o amor, odeio estar apaixonada", ela diz a ele. Em alguns momentos, aparenta sentir algo por Max, o que ele interpreta como a reciprocidade de seu sentimento. Ela não diz que sim nem que não ("talvez", é o que ela diz), e mesmo assim, aceita viajar com ele. Trata-se de mais uma tentativa (novamente repudiada por Nicholas) de fugir e ir em busca de sua liberdade e felicidade. Ainda a Max, Francesca diz, em outras palavras, que sua vida é mais tranquila sem amor, pois que ela construiu para si própria uma barreira feita de música. Ela vivia segura naquele mundo onde somente a música existia e ninguém podia penetrar essa barreira. Mas então apareceu Max, oferecendo-lhe novamente a chance de querer mais que isso... E isso a deixava insegura, pois a luta pela própria felicidade oferecia riscos a Francesca: ela temia Nicholas, não sabia como falar sobre isto com ele. No fundo, Francesca preferia iludir-se com a tranquilidade de uma vida preenchida apenas com música, do que dar a si própria a chance de acreditar que poderia ser feliz de outra maneira; ser realmente feliz.

* É interessantíssimo notar como a capacidade de sentir afeto transparecia de forma muito lenta e muito discreta na personalidade de Nicholas. A forma como Francesca reagia a isto também é bastante egnimática. Pouca gente deve notar, mas o fato é que durante o filme todo Nicholas sempre a chamou de Francesca; contudo, na última cena em que Francesca se apresenta em um concerto, ele a chama de "querida". Isto passa despercebido, já que nenhuma outra atitude no comportamento de Nicholas demonstra qualquer carinho por ela, apenas aquela palavra: "querida". Acho que nem a própria Francesca repara. Mais ao fim do filme, quando Nicholas a procura para incentivá-la a continuar o tratamento psiquiátrico, ele fala com ela com mais suavidade - não necessariamente com ternura nem com sinais de qualquer coisa que possa sentir por ela, apenas com menos rigor. A atitude dele provoca um breve sorriso no rosto dela. Intrigado, ele pergunta a ela o porquê do sorriso, no que Francesca responde: "Engraçado, você é tão diferente quando é gentil... Nestes momentos, eu faria qualquer coisa por você". Com isto, já ciente do impacto de sua suavidade, Nicholas convence-a a procurar o psiquiatra. A declaração de Francesca aparentemente pode ter alguma conotação romântica, mas esta é a análise óbvia. Se examinarmos melhor, poderíamos concluir que esta disposição dela em "fazer qualquer coisa por ele" tem muito mais a ver com o seu costume de sempre obedecer às ordens dele, do que propriamente com o amor que ela porventura sentisse por ele. Esta subserviência da qual Francesca fala está mais relacionada com o poder disciplinar que Nicholas exerce sobre sua alma, do que com os sentimentos que ele faça nascer nela. 

Imagem retirada do site do canal TCM
Em suma, o filme tem uma porção de cenas, frases e detalhes que supostamente não querem dizer muita coisa; porém, agremiados e examinados, dão vários indícios de aspectos fundamentais da história e da personalidade de Francesca e Nicholas, e da estranha relação entre eles. Ao fim, não se sabe dizer se o que existia entre ambos era exatamente amor. Apesar de minha porção "romântica blockbuster" ter vibrado com o fim, o fato é que até hoje não sei o que aquele fim significou. A despeito de Peter e Max, a já curada Francesca escolheu permanecer vivendo com Nicholas. E o que isto quer dizer? Que ela o ama? Que o perdoou? Que quer seguir vivendo de acordo com os planos que ele sempre fez para ela? Não há como saber. Eu adoraria ver uma análise mais profunda feita por um profissional da área da saúde mental. 

"O sétimo véu" é um drama psicológico interessantíssimo e muito bem feito - inclusive, deu aos roteiristas Muriel Box e Sydney Box o Oscar de melhor roteiro original. Não é exatamente uma opção para quem quer se divertir ou se deliciar com uma história de amor, embora os protagonistas formem um par muito sedutor. É um filme para quem gosta de pensar, refletir e congregar mil possibilidades, assim como eu fiz ao longo deste texto.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Traves e argueiros

"Antes de fazer aos outros uma censura de suas imperfeições, vedes se não se pode dizer a mesma coisa de vós." 
(Questão 903 do Livro dos Espíritos)


Eu costumava simplesmente apontar o dedo e desviar todas as atenções para o apontado. Hoje vejo que esta era uma forma de ignorar que havia - e ainda há - em mim muito daquilo que eu costumava condenar... 

O tempo passou e eu optei por me afastar de várias destas coisas que me incomodavam; até que, certa feita, flagro-me diante de algumas delas novamente, e já lidando com elas de uma maneira muito mais tranquila. Talvez eu tenha amadurecido um pouco, pois o fato é que hoje as coisas estão mais claras, e já consigo entender que o que mais me incomodava não era exatamente aquilo que eu acreditava que me incomodava, mas sim, o fato de eu não me sentir à vontade para encará-lo... Hoje me sinto suficientemente confortável comigo mesma para admitir que aquelas coisas me deixam desconfortável justamente porque eu me identificava com elas. 

A conclusão a que chego é que eu olhava para estes incômodos e era como se estivesse olhando para um espelho, enxergando nele uma porção de coisas que detestava em mim mesma. Mas projetar nossas frustrações naquilo que encontramos fora não apaga o fato de que o defeito existe também dentro de nós... 

A verdade é que geralmente o que nos coage a olhar para dentro de nosso interior e criar intimidade com nossas próprias mágoas e imperfeições são justamente as coisas e pessoas que fazem-no com naturalidade. Conviver com quem não tem vergonha de ser o que é incomoda àqueles que recusam-se a aceitarem-se como são; assim como, vivenciar fatos que exigem espontaneidade e despudor constrange aqueles que ainda estão em luta contra os próprios dissímulos e vergonhas.

Reconhecer tudo isto faz com que eu me sinta mais leve, pois eliminei a preocupação de mascarar o defeito para mim mesma, e agora só me resta a preocupação de corrigi-lo. Expulsei de mim alguns pudores, e este fato me permite aceitar abertamente algumas coisas, sem o estresse de sentir-me culpada por isto.

Hoje, enfim, posso dizer que convivo bem com muitas coisas que outrora me incomodavam - mas não com todas... Quanto às outras, ainda terei que repetir o processo.


"Cada qual de nós, seja onde for, está sempre construindo a vida que deseja.
Existência é a soma de tudo o que fizemos de nós até hoje.

Toda melhoria que realizarmos em nós, é melhoria na estrada que somos chamados a percorrer.
Toda ideia que você venha a aceitar influenciará seu espírito; escolha os pensamentos do bem para orientar-lhe o caminho e o bem transformará sua vida numa cachoeira de bênçãos.
Se você cometeu algum erro não se detenha para lamentar-se; raciocine sobre o assunto e retifique a falha havida porque somente assim, a existência lhe converterá o erro em lição.
Muito difícil viver bem se não aprendemos a conviver.
A vida por fora de nós é a imagem daquilo que somos por dentro.
Viver é lei da natureza, mas a vida pessoal é a obra de cada um
Toda vez que criticamos a experiência dos outros, estamos apontando em nós mesmos os pontos fracos que precisamos emendar em nossas próprias experiências.
Seu ideal é o seu caminho, tanto quanto seu trabalho é você."

(André Luiz, no livro "Respostas da vida", psicografado por Chico Xavier)