domingo, 30 de outubro de 2011

Hoje é domingo, filha


30 de outubro de 2011 na cidade em que eu e seu pai nos conhecemos, na cidade em que fui criada com tanto amor, na cidade em que comecei a sonhar com você,

Querida filha,

O domingo amanheceu nublado. Um pouco cinza e com promessa de chuva, exatamente como sua mãe gosta. Acordei antes das 7h, porque estou passando por uma fase de pouco sono. Tenho estado muito disposta, muito enérgica, com pouca vontade de dormir e com uma ânsia enorme por aproveitar bem o meu tempo. Seu pai diz que é devido à musculação, a qual tenho levado muito a sério. Eu, em tom de gozação, digo a meus amigos que é porque estou ficando velha e não consigo mais dormir até tarde.

Mesmo assim, propus-me dormir mais um pouquinho, e fiquei na cama até as 9h. Levantei e fui preparar um café da manhã para seus avós e sua tia: frutas picadas, café quentinho com leite, torradas com queijo. Bem pouco, pois daqui a algumas horas iremos almoçar na casa daquela nossa amiga querida, cuja família é praticamente a nossa própria família; você vai conhecê-los, filha. Será impossível você não se tornar o novo xodó deles também.

Nós adoramos falar sobre as mais diversas coisas durante o café da manhã nos domingos e feriados, ou seja, em dias nos quais temos tempo para conversar à vontade. O diálogo é importante, filha; aprendi isso com sua avó. Nós quatro somos muito unidos, conversamos bastante, trocamos idéias. Às vezes um ou outro tenta impor as suas aos outros, mas isso faz parte. Nós todos temos personalidades muito bem definidas, cada um tem seu jeito de ser e suas convicções. 

Então começou a chover. Sentei-me na ponta da mesa da cozinha, de modo que conseguisse observar a vista da rua pela janela (moramos em um prédio, filha). Peguei o computador, e vim escrever para você. Não, não este texto. Outros. Você sabe, todos são para você, mas acho que em primeiro lugar, são para mim. 

Li as notícias do dia, escrevi um pouco, adiantei alguns trabalhos da faculdade.

Por volta das 12h, fomos almoçar: eu, seus avós, sua tia, e seu pai. Estávamos tão felizes! Sabe-se lá o porquê. Há algo diferente no ar hoje. Eu atribuo à chuva, como sempre; mas não deve ser isso, pois seus avós não são apaixonados por chuva como eu, e mesmo assim estão radiantes. É muito bom estarmos juntos, filha, nós e nossos amigos verdadeiros. Sempre rimos muito, gostamos da companhia um do outro. Nossas famílias se dão muito bem.

Espero que, quando você nascer, eu saiba criar esse clima gostoso de família, para a nossa família: eu, você e seu pai. Quem sabe até mais alguém no futuro? Não, filha, não o seu namorado; estou me referindo a um irmãozinho.

Ao me deixar em casa, seu pai me disse coisas tão bonitas. Você não sabe o quanto somos felizes, filha. Eu tento te transmitir essa sensação através dos meus textos, mas é algo que transcende as palavras. Você vai perceber quando for grandinha, observando nos meus olhos e nos dele, e no modo como nós nos olhamos.

Ainda extasiada pela chuva e pela alegria de ser amada por alguém tão especial, decidi escutar música enquanto terminava meus afazeres acadêmicos: o novo álbum da Marisa Monte, e um da Maria Bethânia. São canções tranquilas cantadas por belas vozes, combinam com o dia de hoje.

Marisa Monte me fez lembrar da sua tia-avó. Ela adora, sabia? Mandei uma mensagem de celular a ela dizendo que sinto saudades, e pedindo para que ela nunca perca seu usual bom humor. Tenho certeza que meu gesto a surpreendeu, pois isso não é do meu feitio. Meu jeito é meio frio, filha. Não costumo dar demonstrações de carinho. Certamente muitas pessoas estranham esse aspecto da minha personalidade, mas é o que sou. Não quer dizer que eu não sinta amor. Ah, e se quer saber, sua tia-avó adorou a mensagem.

Ao escutar "Fonte", da Maria Bethânia, pensei no seu pai. Geralmente não uso de termos muito clichês para descrever o que sinto por ele, mas desta vez acho que me identifiquei.



"Não há nada mais bonito

Que o nosso amor
Ele é sonho, é som, é sol, é cor, é vida

Quando a tristeza quer chegar

Penso na chama de nós dois
E me aqueço no calor
Que vem da luz do teu olhar
Pensando bem
Que força tem
O amor de quem sabe se dar
E transforma tudo
Em fonte de beleza"


"Ainda bem", do CD da Marisa, também me fez refletir sobre o nosso relacionamento. Acho que a chuva está fazendo de mim uma romântica, filha!


"Ainda bem que agora encontrei você
Eu realmente não sei o que eu fiz pra merecer você

(...)
Quem diria que a meu lado você iria ficar?
Você veio pra ficar,
Você, que me faz feliz..."



Enquanto eu me delicio com essas canções, seus avós estão descansando, e sua tia está criando coragem para estudar para uma prova. Eu estou aqui, escrevendo para você. Mal terminei meus estudos. Mais tarde, vou sair com seu pai e um casal de amigos (eles estavam presentes no almoço de hoje) para procurar algum lugar onde façam um capuccino saboroso. Será que vamos achar? Nossa querida cidade não costuma ter coisas desse tipo... Mas o que importa é a companhia. Aliás, o que importa é a intenção: seu pai me convidou porque sabia que eu iria gostar disso, em um dia como hoje. 

Ele não é um amor? Tão atencioso e carinhoso comigo. Se você tiver um irmãozinho, farei questão de que ele aprenda com seu pai a ser um grande homem. Seu irmão vai ser um homem de verdade, ainda que se sinta atraído por homens também. O que faz de alguém um grande homem não é sua opção sexual, mas o seu caráter. Você também será uma grande mulher, independente de quais sejam as suas preferências afetivas.

Hoje é um dia comum, filha. Mais um domingo. Estou na minha casa, no meu lar, com a minha família, que tanto amo. Tenho muitas coisas a fazer, mas também terei tempo para me divertir um pouco. 

Eu sou feliz assim, filha. Não há nada de muito extraordinário em minha vida, mas na singeleza da minha rotina, eu posso me considerar uma pessoa completamente realizada. Nada me falta, e as perspectivas para o meu futuro são as melhores possíveis. Sei que serei mãe de uma menina maravilhosa e construirei um lar de muito amor. Sei disso porque hoje gozo de todas as condições propícias para isso: tenho uma família amorosa e incrível, um parceiro muito melhor do que eu jamais imaginei que teria, minha saúde é ótima, estudo algo que gosto, e guardo comigo a certeza de que Deus é perfeito e justo, e em razão disso, tudo na vida sempre acontece exatamente da maneira que deve acontecer. Eu tenho tudo, filha! Pensando bem, acho que minha vida não é tão comum assim. Ter todas estas coisas não é realmente algo extraordinário?

"Rebus sic standibus": um autodiagnóstico

Estudante e futura operadora de Direito que sou, caso fosse escrever uma autobiografia, creio que deveria se chamar "Rebus sic standibus", em razão da minha frequente necessidade e vontade de não alterar o panorama das coisas, e o desconforto que sinto em situações que envolvem coisas novas.

Muitos diriam que tenho medo de mudar, e que por isso prefiro permanecer em situações cômodas. Não é que eu negue, mas penso que o sentimento que alimento em relação às transformações da vida não é exatamente medo, mas sim, impaciência.

Em Direito Civil, o princípio "rebus sic standibus" quer dizer "deixar as coisas como estão". Mudar todo um panorama implicará no surgimento de uma nova situação jurídica, demandando uma série de alterações decorrentes, as quais precisarão ser feitas para que tudo se amolde às novas circunstâncias e às exigências legais.

Transpondo o conceito para a vida humana, reflito que o que realmente me dá preguiça não é este processo de alteração, mas sim, a forma como devemos nos portar enquanto essa mudança não se consolida. 

A verdade é que não gosto muito do início das coisas. O começo é tenso porque representa o desconhecido, e estar no desconhecido é não ter certeza de que tudo ficará bem. A falta desta certeza me deixa atônita.

Toda mudança, em especial na etapa inicial, requer muita cautela, sensibilidade, prudência. Devemos estar sempre pisando em ovos, disfarçando um defeito ou outro, tentando nos amoldar àquela nova situação. Há pouca ou quase nenhuma liberdade, naturalidade, porque todos estão ainda desempenhando performances, representando papéis. Esta situação é sufocante.

Eu gosto de estar adaptada. Gosto de saber onde estou pisando, ter a noção de tudo que me rodeia; gosto da certeza de ter certeza das coisas. Agrada-me saber que finalmente posso respirar aliviada, finalmente posso ser eu, finalmente posso abandonar as tensões inerentes àquele estágio onde as pessoas não se conhecem e não sabem para onde estão indo. O início é sempre a batalha pela conquista do próprio espaço, e eu não gosto deste ponto - gosto daquele ponto onde o espaço já está garantido e eu já estou satisfatoriamente instalada. 

A verdade é que sou obcecada por estabilidade. A luta da minha vida é pela conquista de coisas que duram. Não gosto de esporadicidade, efemeridade e aventuras. Não gosto da sensação de perder coisas às quais levei tanto tempo para me acostumar ou para gostar.

Na realidade, não é que deteste tudo que é novo. Aprecio mudanças que tendem a melhorar a vida, mas prefiro quando acontecem gradativamente. Tudo que acontece aos poucos possui maior tendência de se tornar sólido e firme. 

Mudanças rápidas e intensas demais me afligem, porque interpreto-as como um grande e insignificante gasto de tempo. Não vejo lógica em estressar-me tanto para ajustar-me a um novo statu quo res erant ante bellum, e em questão de pouquíssimo tempo ter que abandonar todos estes novos hábitos. Estrição demasiada impede-nos de aproveitar melhor os momentos; atrapalha o desfrute, estorva o bem estar. Ao fim de tudo, o que resta? Tempo perdido a troco de nada. 

Gosto de segurança. Gosto de ter tempo para ser feliz, e de saber que até o fim deste tempo marcado, estarei gozando refertamente desta felicidade. A perspectiva de precisar renunciar a esta felicidade me deixa impaciente.

Engraçado atestar que sou impaciente por natureza. Não é algo que admiro muito em mim, mas faz parte do que sou, embora não pareça - e, de fato, não parece, pois sou vista como uma pessoa muito quieta, até pacata. Meus gestos e modo de agir são normais, tranquilos. A impaciência reside em minha mente.

Sou bombardeada por estímulos o tempo inteiro, e isso me deixa maravilhosamente confusa (e antes que me achem muito louca, defendo-me com termos científicos: transtorno de déficit de atenção). Há um bilhão de coisas interessantes neste mundo, e parece-me muito operoso permanecer concentrada em somente uma delas. Como posso focar-me 100% em um assunto quando há tantos outros que chamam a minha atenção? Sinto que estou em um tiroteio, mas um tiroteio de coisas boas. Aliás, ótimas. É preciso ser mais do que bom para captar o meu interesse.

Deveras, raramente estou concentrada. Na maior parte do tempo, é só a maior parte da minha mente que está ocupada por um assunto. O restante está preenchido por mil e um outros distintos, em uma constante batalha consigo mesmo, como se cada tema estivesse peleando pela minha atenção. Mas, calma, pessoal! Há espaço para todos na minha louca cabecinha. Nenhum perderá seu lugar; quem sairá perdendo sou eu, que fico exausta com tantas coisas para pensar.

Ah, que modo mais ranzinza de enxergar a situação! Não saio perdendo, não. Eu ganho muito com tudo isso. Devo muito do que sou à minha capacidade e costume de me interessar por tantas coisas diferentes. O ecleticismo, a versatilidade e a multiplicidade de habilidades, se não são a chave para as grandes conquistas da vida, ao menos são de grande serventia para chegar até elas.

Eu quero usufruir a vida com toda a sua plenitude, e é uma ilusão pensar que isso pode ser obtido por meio de um bilhão de experiências fugazes, ainda que dotadas de muita intensidade. A intensidade é superestimada, hoje em dia. Intensidade nada mais é que uma superconcentração de emoções. Eu prefiro emoções dosadas, ser feliz todos os dias, em vez de ser extremamente feliz em algumas poucas e breves situações isoladas.

Eu gosto de coisas belas e interessantes, divertidas ou reflexivas, profundas ou simplesmente entretedoras. Gosto de coisas enérgicas e tenho pouca paciência para serenidade. O mundo é tão vivo! Há tantas idéias para serem pensadas! Eu preciso de muito tempo, espaço e condições para poder pensar em todos estes assuntos, para apreciar todas estas belezas. E só terei isso se estiver estabelecida, estável, segura em algum lugar ou alguma situação. 

Ambições

O que é, para vocês, em um sentido não pejorativo, ser ambicioso? Ambição é querer muito, é ter grandes aspirações, vocês me respondem. Em contrapartida, faço outra pergunta: o que é "muito"? A quê exatamente você se refere quando usa a palavra "aspirações"?

Muitos que fizeram e/ou fazem parte da minha vida e depositam grandes esperanças em mim, possivelmente ficarão decepcionados quando souberem do meu conceito particular de ambição. Certamente me criticarão e dir-se-ão desapontados com a minha atitude de "pensar pequeno" ou "sonhar pouco", quando me ouvirem falar sobre os planos que faço para o futuro.

Mas vou falar, porque não tenho nada a temer: profissional e financeiramente falando, descobri-me como uma pessoa não muito ambiciosa. O que almejo não é mais que uma posição estável, confortável, propícia à concretização dos meus outros objetivos, sobre os quais falarei mais adiante. Não preciso de grandes títulos, um cargo vultoso ou muito status

Okay... Algum status é sempre bem vindo; tenho ego, sou humana. Mas, de uma maneira geral, creio que conseguirei ser feliz sem ocupar a máxima posição possível em alguma escala. Algo mediano me bastará; assim penso. 

Sou medíocre? Então espere um pouco, escute o outro lado: considero-me realmente ambiciosa quando se trata de realização pessoal, emocional, moral. Não me contento com menos que felicidade plena. Estar bem, para mim, é uma necessidade. Ser feliz, estar em paz com minha consciência, alcançar meus ideais, não são alternativas em minha vida: são exigências que faço. E sou lúcida ao afirmar que tais coisas, hoje em dia, não são lá muito fáceis.

Em um mundo cada vez mais louco, confuso e materialista, ser bem resolvido é um alvo de complexo alcance. Porém, mesmo assim, eu quero. As coisas já são assim em minha vida; e ainda que a tendência seja de as situações ficarem cada vez mais custosas, eu insisto em continuar desejando toda a felicidade possível de ser gozada neste mundo. E sabem mais? Eu vou conseguir. Tenho certeza.

Eu quero aquilo que poucos conseguem, aquilo que muitos iludem-se pensando possuir quando na verdade alimentam mil tensões, aquilo que se torna cada vez mais distante conquanto vamos sucumbindo às tentações e armadilhas da vida moderna: eu quero ser feliz! Eu quero colocar em prática tudo aquilo que venho planejando desde que me entendo por gente. Eu quero terminar a vida com a sensação de missão cumprida. Quero poder me orgulhar das coisas que fiz, e daquilo que eu sou. 

Tenho certeza que querer tudo isso é querer demais. 

E agora, vocês me acham ambiciosa ou não?



Provavelmente, ainda não. Tudo bem. Mas não fiquem tristes por mim, pois eu mesma não estarei. 


Eu sei que vocês esperavam que eu fosse mais e maior. Mas, se observarem com cuidado, verão que serei muito. Em determinados aspectos, analisados isoladamente, minha vida poderá ser considerada limitada. Em um aspecto ou outro, poderei ser chamada de "acomodada". 


Entretanto, se se dispuserem a procurar saber quão grande é a minha avidez por fazer algo de bom por mim mesma e por todos outros contemplados por meus planos, surpreender-se-ão dizendo para si mesmos o quanto sou ambiciosa. E então, talvez, pensarão que sonho alto, talvez até alto demais.





"Quase sempre a maior ou menor felicidade depende do grau de decisão de ser feliz."
(Abraham Lincoln)

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O que um grande amor pode nos ensinar sobre a vida

A vida é tão engraçada. Inicialmente, eu tinha dificuldades em enumerar os motivos pelos quais me interessei por você. Quem pode explicar por que decidimos ficar juntos? Na época, nem eu e nem você. Em um belo dia, eu acordei e pensei que daria certo. Ambos concordamos, e lá fomos nós, sem a menor idéia do que poderíamos encontrar ao longo desta caminhada, tampouco se ela teria sucesso, e quanto duraria.

A vida preparou uma surpresa para nós. Para mim, principalmente. Eu, que me achava a epítome da elegância (segundo você, ainda sou), compreendi, ao observar seu comportamento, o quanto você tinha a me ensinar, mesmo que não fosse essa a sua intenção. Ou será que era? De qualquer forma, foi muito gentil da sua parte me dar um banho de lições de vida sem tornar explícito o fato de que eu era quem tinha muito a aprender com você. 

Você me mostrou, sem falar, apenas agindo, e sem a pretensão de ser um instrutor. Silenciosamente, foi lá e fez. Você simplesmente foi você, e seus atos falaram por si próprios. E eu soube escutar. Eu aprendi a observar. Em suma, aprendi muito. E você sequer acreditava que eu tinha algo a aprender! Você foi humilde, mas com firmeza, e isso sim é ser elegante.

Pois bem, se antes eu não conseguia encontrar razões que justificassem o que estávamos criando para nós mesmos, agora elas me parecem muito claras. Talvez, bem lá no fundo, eu sempre houvesse tido a noção do quanto precisava aprender com você. 

Quando te conheci, o que mais me atraiu em você foi justamente aquilo que eu ainda não havia encontrado em mim. Eu fiquei encantada com os seus atributos, porque queria-os para mim. Porém, por medo de assumir o quanto precisava de você, por receio de tomar conhecimento da minha própria fraqueza, eu dissimulei os fatos, fazendo-me acreditar que eu é quem teria muito a te ensinar. 

Como te subestimei... É certo que mereço algum crédito pelo seu constante amadurecimento ao longo de todos estes anos; entretanto, jamais imaginei que a recíproca seria tão verdadeira.

E olha só como tudo deu tão certo! Todo o nosso trabalho, esforço, paciência e boa vontade valeram a pena. Hoje, com tanto tempo já passado, eu soube absorver de você aquilo que eu tanto almejava, e você também conquistou para si muito do que admirava em mim. Somados, somos incríveis. Mas só é possível obter resultados avultosos quando os fatores somados também já são grandes, isoladamente. 

Em outras palavras: só somos grandiosos juntos porque também somos grandes separadamente. É preciso duas pessoas maravilhosas para formar um casal maravilhoso.

Duas pessoas incompletas não podem encontrar felicidade juntas. Dependência não é amor. O relacionamento de dois seres que dependem um do outro é um sustentáculo, uma muleta, um remédio, um tubo respiratório; qualquer coisa, menos uma história de amor. 

Eu nunca quis que você dependesse de mim. Nunca me aborreci com o fato de que a sua vida não se resume a mim. Você possui outras preocupações, outros interesses, outros compromissos, e quer saber? Eu acho isso ótimo! 

Se você é completamente capaz de ser feliz sem mim, mas mesmo assim prefere estar comigo,  a conclusão a que chego é eu devo ter mesmo algo de especial. Você preza sua individualidade, gosta de ter o seu espaço, é totalmente bem resolvido, não precisa estar com alguém para ser feliz... E apesar de tudo isso, escolheu ter alguém ao seu lado... É, você deve me amar muito mesmo. E eu jamais imaginei que a recíproca seria tão verdadeira.

Fernando Pessoa, Espiritismo e física quântica


"Tudo que se passa no onde vivemos é em nós que se passa. Tudo que cessa no que vemos é em nós que cessa. Tudo que foi, se o vimos quando era, é de nós que foi tirado quando se partiu."
(Fernando Pessoa, em "O Livro do Desassossego")



Lendo Fernando Pessoa, às vezes pode parecer que certas frases que ele dizia eram formadas tendo em vista apenas a beleza das palavras, o modo como elas soam quando ditas juntas. Refletindo mais detalhada e profundamente, todavia, chegamos à conclusão de que, em suas sentenças aparentemente loucas, havia muito mais sabedoria do que podemos imaginar.


Analisemos estas frases acima colacionadas, por exemplo. A um leitor menos atento, ou menos disposto a filosofar um pouco, podem soar como só mais um devaneio do escritor português.


Entretanto, até mesmo a Física Quântica, a Psicologia e - claro, a mais completa de todas as doutrinas - o Espiritismo estão de acordo.


As coisas existem porque fazemo-las existir. A realidade que enxergamos é a que nós mesmos projetamos. Vemos as situações conforme queremos que elas sejam. 


"Segundo David Icke, nós não enxergamos com os nossos olhos e sim com o nosso cérebro. Ele vê o que foi condicionado desde criança pela educação, cultura, sistema de crenças etc. Se formos hipnotizados e programados a não ver alguém que estará na nossa frente, ao voltarmos do estado hipnótico, não a veremos. Essa experiência já foi feita e nos remete para a certeza de que nós construímos a nossa realidade dentro de nós e não fora."
(Vera Ghimmel, em "Realidade ou universo holográfico?". Disponível em: http://soubem.forumais.com/t37-realidade-ou-universo-holografico)

Sob esta ótica, torna-se fácil compreender porque duas ou mais pessoas, passando pelas mesmas coisas, podem avaliá-las diferentemente. O que a Filosofia chama de subjetividade, e a Física Quântica relaciona à multidimensionalidade, o Espiritismo, por sua vez,  em uma conjuntura completa, lógica e aprimorada, chama de evolução espiritual e individualidade do Espírito. 


Sobre a maturidade espiritual, encontramos, nas obras de Allan Kardec, explanações como a seguinte:


"...Provém isso de que a parte por assim dizer material da ciência somente requer olhos que observem, enquanto a parte essencial exige um certo grau de sensibilidade, a que se pode chamar maturidade do senso moral, maturidade que independe da idade e do grau de instrução, porque é peculiar ao desenvolvimento, em sentido especial, do Espírito encamado."
(O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo XVII)


E quanto à individualidade do Espírito:


"Se as almas não se diferenciassem no todo, teriam apenas as qualidades do conjunto e nada poderia distingui-las umas das outras; não teriam nem inteligência, nem qualidades próprias. Porém, muito ao contrário disso, em todas as comunicações demonstram ter consciência do seu eu e uma vontade própria. A diversidade que apresentam em todas as comunicações é conseqüência da sua individualidade. Se após a morte houvesse somente o que se chama de o grande Todo que absorve todas as individualidades, esse Todo seria uniforme e, então, todas as comunicações do mundo invisível seriam idênticas. Uma vez que lá se encontram seres bons e maus, sábios e ignorantes, felizes e infelizes, e de todas as espécies: alegres e tristes, levianos e sérios, etc., é evidente que são seres distintos."
(Pergunta 152 do Livro dos Espíritos)


"Cada Espírito é sempre o mesmo eu, antes, durante e depois da encarnação, sendo esta, apenas, uma fase da sua existência."
(A Gênese, capítulo XI, item 22)


A Física Quântica, baseada na teoria segundo a qual não há somente uma dimensão, mas várias, explica porque cada indivíduo vê as coisas a seu modo: 



"Para justificar as propriedades “percebidas” na matéria, a Física Quântica apresenta, por formulações matemáticas, a multiplicidade de dimensões. O que antes eram quatro (três mais o tempo), passou a ser onze, incluindo, inusitadamente, a dimensão espiritual. As onze dimensões (dez espaciais e uma temporal) são padrões vibratórios diferentes. Enxergamos (percebemos) pela consciência em três dimensões. Se em quatro dimensões já é complexa a percepção da realidade pelo ser humano, o quão inimaginável deve ser quando o número é maior. 
As dimensões apresentadas pela Física Quântica não são, como pode parecer, isoladas entre si. São interrelacionadas, indissociadas como a linha é do ponto que a forma. Elas se interpenetram sem que se possa encontrar uma unidade dissociada de um todo, tampouco uma totalidade em que se possa resumi-las. Unidade e totalidade se equivalem, portanto, seus constructos lógicos não são suficientes para assambarcar a realidade multidimensional.

Chegaria ao ser humano comum, em sua vida cotidiana, a percepção das onze dimensões? Para que elas servem? São perguntas que exigem raciocínio complexo com respostas não tão simples. Pelo menos, sabemos que a complexidade do Universo é maior do que supomos e do que captamos. Vivemos numa limitada e estreita faixa de percepção, pois nossos sentidos físicos bloqueiam a maior parte dos fenômenos do Universo. Provavelmente ocorrem muitos fenômenos à nossa volta sem que tenhamos a menor noção de como e porque ocorrem, mas que interferem no nosso modo de ser.

Conceitos como Deus, Vida, Natureza, Universo, entre outros, são utilizados, por vezes, para significar algo que responde ou dispõe a realidade para a consciência humana, como uma certa força, não material, que comanda (tudo que é físico, psíquico e espiritual) todas as dimensões e reordena a realidade segundo fatores internos da mente humana. Esses conceitos configuram uma determinada realidade em que nos situamos, compondo um mosaico de possibilidades de ação e realização. À medida que modificamos conceitos e integramos novos significados, nos inserimos em outras realidades, ou as criamos, penetrando dimensões inacessíveis pelos sentidos físicos, mas alcançáveis pelos novos modos de concepção. 
Nada garante que os atributos daquela força, de fato, pertençam a algo externo, tampouco se encontrem no próprio ser humano. Se assim fosse, veríamos, em todos, a mesma crença e a mesma competência de reconfigurar a realidade. 

(...) 

Independentemente das dimensões apresentadas pela Física Quântica, outras existem 23  que promovem a complexidade da vida humana. As dimensões a que me refiro são aquelas que nos vinculam ao outro e que põem o ego nas relações. No interior da psiquê humana, existem diferentes dimensões que nos vinculam nas relações com o outro.

(...) 

A realidade é incrivelmente complexa e admiravelmente fantástica. Qualquer tentativa de limitá-la ao convencionalismo ortodoxo das religiões é menosprezar a   própria   inteligência humana.  São múltiplas as possibilidades de realidade à disposição da imaginação humana. A liberdade é um capítulo da experiência humana que pode e deve ser vivido na construção dessas possibilidades de realidade. Cada ser humano tem a liberdade de criá-las e de vivenciá-las como lhe prover.
Realidade, existência, vida, mundo externo, representação e vontade, dimensão etc., isto é, aquilo que se apresenta para que o Espírito se manifeste, aconteça, “experiencie”, é algo que, de fato, se torna cada vez mais complexo à medida que a consciência do eu, como individualidade, evolui."
(Adenáuer Novaes, em "Psicologia e universo quântico")


Parece-me muito interessante pensar que o conjunto formado por tudo aquilo que podemos ver, atestar e tocar não é o único ângulo sobre o qual se pode observar as coisas; e que, conforme expandimos nossos conhecimentos e aperfeiçoamo-nos moralmente (em outras palavras: conforme nosso Espírito avança nos graus da escala evolutiva), somos capazes de enxergar diferentemente, cada vez mais e melhor, adquirindo maior percepção de tudo à nossa volta.

Só mesmo o Espiritismo para vir nos ensinar que Deus é perfeito de tal maneira, que todas as leis criadas por Ele para reger o Universo existem desde sempre, ainda que tenham sido necessários séculos para que a humanidade conseguisse conceber um mínimo delas - e ainda assim, até hoje, não descobrimo-las por completo, exatamente porque ainda não somos suficientemente evoluídos, moral e intelectualmente, para compreendê-las...

“Deus não se engana. Os homens é que são obrigados a modificar suas leis, por imperfeitas. As de Deus, essas são perfeitas. A harmonia que reina no universo material, como no universo moral, se funda em leis estabelecidas por Deus desde toda a eternidade.”
(Pergunta 616 do Livro dos Espíritos)

terça-feira, 25 de outubro de 2011

"A gifted man": os débitos morais de todos nós



Assistindo à nova série "A gifted man" (em tradução literal: Um homem com um dom), sempre penso que a série bem que poderia se chamar "An indebted man" (Um homem endividado).

O protagonista, Michael Holt, é um neurocirurgião de sucesso que vê sua mediunidade sendo aflorada, lidando com constantes aparições do Espírito de sua ex esposa, a também médica Anna. Este fato faz com que uma série de novos problemas venham bater à sua porta: Anna dirigia uma clínica de saúde familiar para famílias carentes em um bairro dominado por imigrantes latinos, e com sua morte, a situação da clínica desmorona. É claro que ela vem pedir socorro ao ex marido.

Michael tem uma vida atribulada, mas financeiramente confortável. É um excelente profissional, mas praticamente não possui vida pessoal desde que se divorciou, e também foge do papel de tio - possui um sobrinho problemático e uma irmã desequilibrada, mas evita envolver-se. Neste contexto surge a figura de sua ex mulher, convocando-o a ingressar em um mundo de problemas, convite este que ele hesita em aceitar, mas acaba sempre cedendo, seja em razão da insistência de Anna, ou em razão de sua própria consciência. 


É inevitável: a cada vez que precisam de sua ajuda na Clínica Sanando, em um primeiro momento ele tenta se esquivar, pois teoricamente, não é um problema seu; porém, no fim de tudo, sua consciência pesa e ele resiste.

A verdade é que, muito embora não se possa dizer que a vida de Michael seja exatamente tranquila, ele não quer sair da sua comodidade para ingressar nesta nova situação, que o obriga a fazer coisas diferentes das que ele está acostumado a fazer. Mas não adianta tentar ignorar a Clínica Sanando... Por um motivo ou outro, não somente a sua ajuda e seu trabalho estão sempre sendo requisitados, como também, e principalmente, sua boa vontade, solidariedade e humildade. Não são características das quais ele costuma lançar mão em seu trabalho no centro de neurocirurgia. 

A verdade é que, na vida, é inútil tentar fugir das nossas dívidas. Quando temos um débito para com algo ou alguém, em razão de faltas ou compromissos feitos nesta vida ou em outra, o mais sensato a fazer é encará-los de frente, e trabalhar nisto. 

Esquivar-se é tolice... Hora ou outra, o problema vai voltar, e seremos novamente colocados cara a cara com a oportunidade do nosso resgate. Ignorar, até quando? Prolongar a responsabilidade ad eternum; para quê? Nenhuma conta fica pendurada no acerto geral do universo... 




De Ânimo Forte

"Porque Deus não nos deu o espírito de temor, mas de fortaleza, amor e moderação." - Paulo. (II TIMÓTEO, 1:7.)
Não faltam recursos de trabalho espiritual a todo irmão que deseje reerguer-se, aprimorar-se, elevar-se.
Lacunas e necessidades, problemas e obstáculos desafiam o espírito de serviço dos companheiros de fé, em toda parte.
A ignorância pede instrutores, a dor reclama enfermeiros, o desespero suplica orientadores.
Onde, porém, os que procuram abraçar o trabalho por amor de servir?
Com raras exceções, observamos, na maioria das vezes, a fuga, o pretexto, o retraimento.
Aqui, há temor de responsabilidade; ali, receios da crítica; acolá, pavor de iniciativa a benefício de todos.
Como poderá o artista fazer ouvir a beleza da melodia se lhe foge o instrumento?
Nesse caso. temos em Jesus o artista divino e em nós outros, encarnados e desencarnados, os instrumentos d'Ele para a eterna melodia do bem no mundo.
Se algemamos o coração ao medo de trabalhar em benefício coletivo, como encontrar serviço feito que tranqüilize e ajude a nós mesmos? como recolher felicidade que não semeamos ou amealhar dons de que nos afastamos suspeitosos?
Onde esteja a possibilidade de sermos úteis, avancemos, de ânimo forte, para a frente, construindo o bem, ainda que defrontados pela ironia, pela frieza ou pela ingratidão, porque, conforme a palavra iluminada do apóstolo aos gentios, "Deus não nos deu o espírito de temor, mas de fortaleza, amor e moderação".
Xavier, Francisco Cândido. Da obra: Vinha de Luz. Ditado pelo Espírito Emmanuel. 14 edição. Capítulo 31. Rio de Janeiro, RJ: FEB. 1996.

Consumismo, alienação, hedonismo e autocontrole

 "A civilização tecnicista não é uma civilização do trabalho, mas do consumo e do "bem-estar". O trabalho deixa, para um número crescente de indivíduos, de incluir fins que lhe são próprios e torna-se um meio de consumir, de satisfazer as "necessidades" cada vez mais amplas."
(O. Friedmann, Sete estudos sobre o homem e a técnica, p. 147.)


Okay, vocês me pegaram. Eu mordi a isca. Sucumbi às tentações do consumismo.


Todas estas estratégias foram minuciosamente elaboradas para alienar as pessoas, fazê-las acreditar que precisam deste ou daquele produto - ou pior: fazê-las crer que conseguem viver sem ele, mas preferem tê-lo em suas vidas. E eu embarquei nessa.


Ter me deixado enredar por estas manobras calculistas da sociedade capitalista significa que fui fraca? Ou significa que sou forte o suficiente para priorizar o meu bem estar e a minha estima, reconhecendo o meu direito de dar a mim mesma alguns luxos?


Afinal, eu mereço um pouquinho de lazer às vezes, e se este lazer pode ser comprado, por que não? 


Mas espere... As pessoas que incutiram em minha mente a idéia de que posso usar meu dinheiro para ser feliz, são as mesmas que tentam me tornar escrava do consumo, oferecendo a cada dia mais e mais formas de me fazer supostamente satisfeita. Uma sacada de gênio. 


O problema é que a gente nunca se satisfaz. A possibilidade de ter algo melhor não nos permite disfrutar daquilo que já temos. E assim, pensamos sempre no agora, no que está na moda agora, no que há de melhor no mercado agora, do que podemos ou não comprar agora. 


Cientes de que compra nenhuma poderá causar uma satisfação duradoura, ainda assim é condenável querer obter as coisas que nos satisfarão apenas por um momento? Afinal, não é tão errado assim querer um minutinho de alegria... Ou é? 


As coisas vão acontecendo e nós vamos nos acostumando com a idéia da novidade, até chegar ao ponto de gostar dela e até mesmo defendê-la... É a nossa mente que vai se abrindo ou somos nós que vamos nos deixando alienar?


Quanto menos culpados nos sentimos por sermos tão consumistas, estamos simplesmente sendo hedonistas ou alienados? Este prazer sem culpa representa uma vitória em nome do nosso desejo de fazer-nos felizes, ou um fracasso relativo à nossa incapacidade de nos autocontrolar?


A mídia, os veículos de comunicação e a publicidade (atuando em conjunto? Talvez) criam toda essa cultura e esfregam-na diante de nossos olhos, vendendo a idéia de um mundo irresistível do qual podemos fazer parte; basta que, em troca, dê-mo-lhes nosso dinheiro.


De fato, é tudo muito interessante. Não sou tão ingênua a ponto de crer que os convites ao consumo são inofensivos, mas também não sou desconfiada demais para não ver que há um lado realmente bom em tudo isto. Dinheiro não traz felicidade? Ao menos traz alegria, e proporciona momentos agradáveis. 


É possível que alguém adentre a esse universo de possibilidades sem deixar-se alienar? Há a possibilidade de eu estar dançando conforme a música que a indústria capitalista pôs para tocar, mas ainda assim estar me movendo conforme a minha própria coreografia? E, talvez a mais substancial pergunta de todas: será que é possível detectar a hora de parar de dançar? 


Não posso acreditar que entre todas essas parafernálias que nos empurram goela abaixo (ou bolso abaixo) não haja nada para ser aproveitado. Não, de fato eu não acredito nisto. Há muita coisa boa sendo usada como chamariz. Existem sim um monte de obras, objetos e aparelhos realmente úteis e interessantes, servindo como instrumento de alienação. Haja sensatez para distingui-los dos demais, e autocontrole para limitarmo-nos a comprá-los somente, e não querer outros mais!


"(...) o consumo não-alienado supõe, mesmo diante de influências externas, que o indivíduo mantenha a possibilidade de escolha autônoma, não só para estabelecer suas preferências como para optar por consumir ou não. Além disso, o consumo consciente nunca é um fim em si, mas sempre um meio para outra coisa qualquer."
(ARANHA, Maria Lúcia Arruda; e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à filosofia. 2a edição. São Paulo: Moderna, 1993. Disponível em: http://textosfilo.blogspot.com/2008/09/o-consumo-alienado.html)


Eles me querem alienada e manipulável, totalmente entregue aos mundos e fundos que eles prometem, para que consigam me comprar a cada nova idéia nova que coloquem no mercado. E a cada vez que eu abro a carteira ou clico no botão "fechar o pedido", eles riem, porque sabem que me pegaram. Conseguiram de mim o que queriam: não o meu dinheiro, mas a minha ilusão de estar comprando um pedaço de felicidade.


Eu, por minha vez, quero viver a minha vida e ser feliz; divirto-me com algumas das coisas que eles oferecem, mas ao mesmo tempo, tenho consciência de tudo que estou fazendo (acho que não estaria escrevendo este texto se não tivesse essa consciência)... E continuo comprando, satisfazendo minhas vontades (necessidades não seria uma palavra muito honesta para se usar neste contexto) de acordo com minhas possibilidades. Quando não posso, não compro; e quando compro, estou ciente de que quem riu por último fui eu, pois dele a eles o gostinho de pensar que caí na arapuca, quando, na verdade, saltei nela de propósito, e sei exatamente como sair. 


Quem está enganando quem?

domingo, 23 de outubro de 2011

O legado dos singulares anos 90

Eu sempre alentei sentimentos de nostalgia a respeito de épocas passadas. Sempre fui fascinada pelas décadas de 1930 a 1960, e 1980 também (os anos 70, embora tenham lá seu atrativo, não estão entre os meus prediletos); sempre adorei pesquisar sobre estes tempos, tentar criar em minha mente uma noção de como eram as coisas naquelas épocas.

Nesta semana, contudo, eu assistia um episódio da série "2 Broke Girls", no qual as protagonistas deram uma festa temática dos anos 90, quando subitamente fui acometida por um insight de saudosismo por esta década. Uma coisa levou à outra: fiquei morrendo de vontade de assistir "Will e Grace", e peguei os DVDs da primeira temporada (maravilhosa, por sinal!)... Só me fez ficar ainda mais nostálgica. Sim, porque esta é uma década que eu vivi. 

Foi quando pensei: sempre fui tão saudosista em relação aos anos 50, 60, 80, enfim, a décadas que eu não vivi nesta vida... Mas os anos 90 foram a minha década! Claro; 1990 foi exatamente o ano em que eu nasci. Eu cresci nesta década. Foram nestes anos que eu conheci o mundo, conheci tudo, formei-me enquanto pessoa. 

E neste afluxo de pensar sobre os anos 90, e em especial, sobre como me sinto em relação a eles, fiquei relembrando momentos especiais da minha vida àquela época, e fatos marcantes da história e cultura mundial. Nunca duvidei do fato de que o homem pode ser um produto do meio, entre outras coisas, e que o contexto de uma era define as atitudes das pessoas que nela viveram; porém, quando analisamos a forma como essa idéia impacta em nossa própria vida, tudo parece mais compreensível.

Os anos 90 foram a década da liberdade e da diversão, sem dúvidas. As próprias circunstâncias nas quais a década teve início contribuíram para que estas fossem as principais características: 

* No mundo, o capitalismo dava seus gritos definitivos de vitória, após a queda do Muro de Berlim (que deu-se em novembro de 1989);

Ulysses Guimarães e a
"Constituição Cidadã"
* No Brasil, as pessoas começavam a experimentar a sensação de ter quase tudo garantido e poder fazer quase tudo, em decorrência da Constituição Federal proclamada em 1988, a qual firmou a república democrática, a liberdade de expressão, a igualdade, os direitos e as garantias fundamentais e mais uma porção de ônus que o Estado chamou para si, prometendo mil coisas aos cidadãos;

* Na mídia, a MTV chegava ao Brasil, os seriados americanos consolidaram-se como cultura popular, as bandas de rock que cantavam hinos de protesto começaram a desaparecer, deixando espaço para os ídolos pop que só queriam saber de amor, sexo, festas e diversão.

Em suma: depois de anos de repressão, tensão e amarras (em todos os sentidos), parece que nos anos 90 todos "relaxaram e gozaram" - com a devida vênia pelo uso da expressão consolidada ao ser dita pela senadora Marta Suplicy. 

Afinal, em que outra época podia-se ver tanto erotismo descarado em plena luz do dia nos canais da TV aberta? Leia-se: Banheira do Gugu, Tiazinha, Feiticeira etc.
Em que outra década artistas como os Mamonas Assassinas, Falcão e Tiririca teriam feito tanto sucesso, ou pelo menos conseguido fazer algum sucesso?
Em que outro tempo se tem notícia de tantos programas de humor dominando as programações dos canais? No Brasil tivemos: Casseta e Planeta, Escolinha do Professor Raimundo, Sai de Baixo; nos Estados Unidos: Mr. Bean, Seinfeld, Frasier, Friends, Os Simpsons, entre outros.
Quando é que já se havia visto o surgimento de tantas celebridades que chegaram à mídia às custas do corpo, da beleza ou da simples vontade de aparecer? Eram as Renatas Banharas,  Nanas Gouvêas e Ronaldinhas da vida.
Alguma vez já se viu tantas pessoas sentindo tão pouca vergonha de assumir que gosta de estilos de música não cultos? Vale lembrar que na década de 90 é que o sertanejo, axé e pagode estouraram.
E quando é que já se deu tanto crédito a aberrações como ETs e chupa cabras? A quem não se lembra, havia programas de TV que passavam horas e horas abordando estes temas...
Só mesmo nos anos 90 estas coisas poderiam ter acontecido. 

Quando faço esta retrospectiva, concluo que nos anos 90 as pessoas levavam as coisas mais à base da brincadeira. Tudo parecia uma grande festa, uma grande piada. Hoje, vinte anos depois, apesar de estarmos em plena época de Pânico na TV, Rafinha Bastos e vídeos caseiros de comédia no Youtube, ainda assim acho que as pessoas são mais sérias, em comparação com a década retrasada. 

Lendo um pouco a respeito, descobri que muitos jornalistas e pesquisadores atribuem ao incidente do 11 de setembro de 2001 (a queda das Torres Gêmeas) o fato de a sociedade ter se tornado mais cautelosa, séria e menos zombadora. Acho que faz todo o sentido.

Fernando de Albuquerque, da revista O Grito, sintetizou esta transição com as seguintes palavras:


"Os anos 90 foram irô­ni­cos. Todos riram de si mesmo e tudo virou uma geléia de sabo­res e cores. Todos cur­ti­ram. E a pas­sa­gem do século foi com a forte res­saca ini­ci­ada com o 11 de setem­bro em 2001. Seguiram-se aos even­tos novai­or­qui­nos duas guer­ras, escân­da­los polí­ti­cos de cor­rup­ção e o boom das cele­bri­ties. É espe­rar os resul­ta­dos, nos pró­xi­mos 10 anos, dessa era mar­cada pelo Ipod."


Este mesmo jornalista descreveu os anos 90 como "a grande festa que deu carga ao novo século". 

Em outra reportagem do jornal O Diário, encontrei a seguinte análise:

"Os anos 90 foram uma válvula de escape no Brasil. Após mais de 20 anos de repressão política, os brasileiros sentiram o gosto da democracia e se entregaram ao humor: era um período de descobertas e transformações. Um novo leque de possibilidades se abria. O politicamente incorreto imperaria como um modo desejado e interessante de encarar as coisas. 
(...)
O humor se liberou. As pessoas aprenderam a rir de si mesmas. As sátiras perderam seus freios: South Park, Casseta & Planeta, Mamonas Assassinas, entre outros, podiam exercer uma certa crueldade cômica sem condenações. O trash e o brega viraram cult. 'A baixa cultura seria consumida sem culpa.' Segundo Essinger [Silvio Essinger, jornalista e autor do livro 'Almanaque Anos 90'], isso se perdeu na década seguinte. 'Houve um retrocesso. Depois do 11 de Setembro, o politicamente incorreto deixou de ser cultivado. 'As pessoas se retraíram nos anos 2000 -; 'ninguém pode brincar com ninguém'."
(Fonte: http://maringa.odiario.com/dmais/noticia/190897/revisitando-os-anos-90/)


Quando leio estas coisas e reflito sobre toda esta farra e festival de 'podes' que foram os anos 90, consigo entender porque os meus contemporâneos, recém-adultos de hoje, são como são. Por isso vejo tantos jovens perdidos, desregrados, sem saber o que fazer com suas próprias vidas, confusos com tantas opções que o mundo oferece, dificultosos de encarar a vida como os adultos que são. 

Afinal, nós crescemos nesta festa. Passamos toda a vida acostumados com regalias, prerrogativas, gracejos e futilidades. Desde que nos conhecemos por gente, este mundo de tecnologias e possibilidades já estava a nosso completo dispor. Quando nascemos, tudo que havia para ser conquistado já estava consolidado. Nossos antepassados deram o sangue para garantir que tivéssemos a liberdade de sermos o que quiséssemos, e não estou bem certa de que soubemos fazer bom uso destas liberdades. Talvez seja este o motivo de os jovens de hoje não terem força ou postura para lutar, para se indignar com os absurdos; ou de eles não conseguirem decidir o que querem fazer, o que querem ser. 

Entretanto, apesar de todos estes pesares, não condeno os anos 90. Boa parte da minha personalidade foi formada com coisas que li, assisti e ouvi nesta época, que foi a época da minha infância. Quando vejo as fotos ou revejo programas de TV que assistia na época, eu consigo me lembrar das cores, dos cheiros, dos ambientes, das situações, do modo como as pessoas falavam e se comportavam. E quanto mais eu atesto o poder que a cultura, a informação, a moda, a arte, o cinema, o entretenimento e a música tiveram na década de 1990, mais eu tenho certeza de que nasci na época mais propícia para ser quem sou.

Como é interessante olhar por esta ótica! É bom poder examinar uma época da história e dizer: eu vivi isso. Agora sei como se sentem os meus pais quando converso com eles sobre o panorama do mundo nos anos 70 e 80. Será maravilhoso conversar sobre os anos 90 com meus filhos, no futuro.