terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Beyoncé bebendo na fonte da black music em seu álbum "4"

Curiosamente, apesar de sempre ter admirado Beyoncé como artista, em especial por suas performances e incrível capacidade vocal, sempre julguei sua música como descartável. Sempre fui fascinada por suas habilidades na dança, seu carisma e odemagnetismo. Seu dueto com Prince no Grammy Awards de 2004 é, sem dúvida, o meu dueto favorito de todos os tempos e uma de suas melhores performances de todos os tempos, em minhLa opinião. Seu DVD "Live at Wembley" é uma verdadeira aula de presença de palco: adoro seus gestos, coreografia, suas atitudes performáticas, sua força, seu brilho. Também sempre gostei de ouvi-la cantando covers de grandes clássicos como "At last", "All I could was cry" e "The closer I get to you". Sua forma de cantar me agrada: sua voz é potente, ela alcança notas altíssimas, e eu gosto disso!

Mesmo assim, nada disso até então havia sido suficiente para que eu nutrisse algum respeito por sua música, de per si. Hits como "Crazy in love" e "Single ladies" certamente fizeram história e serão comentados pelas próximas gerações, mas se esquecermos o impacto que causaram, ficamos apenas com duas canções dançantes sem nada de muito interessante a não ser a batida envolvente. Pelo menos assim eu pensava até ouvir o álbum "4", lançado em junho de 2011.

Às vezes eu preciso ter contato com uma obra de uma forma diferente para enfim conseguir apreciá-la e entendê-la como ela realmente é - ou, quem sabe, da forma como me soa, de acordo com o meu próprio modo de ver a vida. 

"Run the world": Heather Morris cantando
em Glee, e o videoclipe de Beyoncé
Assim foi com "Run the world", primeiro single de "4", que à primeira escuta não me pareceu grande coisa. "Apenas mais uma música dançante da Beyoncé", eu pensei. Porém, quando a personagem Brittany, de Glee, cantou-a no terceiro episódio da terceira temporada da série, finalmente percebi o grande hino que ela é! Beyoncé nunca escondeu seu entusiasmo pelo feminismo (em canções de álbuns anteriores, sempre fez questão de frisar a independência feminina, como em "Independent woman", e falar de como é importante que a mulher se valorize, como em "If I were a boy" e "Irreplaceable"), mas em "Run the world" ela foi mais explícita do que nunca: mais que uma ode ao mérito feminino, a canção é uma verdadeira convocação ("Who are we? What we run? The world!") às mulheres para que se reconheçam como a grande mola propulsora do mundo ("My persuasion can build a nation...").

Beyoncé cantando
"Love on top" no
VMA 2011
O segundo single/videoclipe a ser lançado foi "Best thing I never had", que é uma canção bonita e agradável, mas, em um primeiro momento, não me pareceu nada além disso. "Só mais uma balada rhythm and blues da Beyoncé", pensei. Foi "Love on top" que aguçou meu interesse pelo álbum "4". Quando vi Beyoncé cantando esta canção no Video Music Awards de 2011, com direito a traje inspirado em Michael Jackson e a revelação de sua gravidez, interessei-me e fui escutá-la melhor. É soul music pura! Se fosse possível voltar no tempo e tocar "Love on top" em uma rádio na década de 1970, ninguém poderia dizer que se trata de algo produzido em 2011.

"Love on top" me levou a pesquisar sobre o resto do álbum, e eu sinceramente me surpreendi. Beyoncé sempre fez questão de se afirmar como uma artista influenciada pela clássica black music, mas em "4" esta influência se manifesta de forma mais clara que em qualquer outro álbum seu. É um álbum bastante intimista, sem muitas canções com potencial para hit, mas todas dotadas de grande carga emocional, intensas e onustas de referências a grandes ícones do soul, funk, hip hop e rhythm and blues.

Cenas do videoclipe de "1+1"
O álbum é aberto pela belíssima balada "1+1", que facilmente se enquadra na categoria de canções que definem Beyoncé como uma diva no mesmo nível de Celine Dion e Mariah Carey: o gênero 'balada romântica'. Em "1+1", Beyoncé mostra sua faceta apaixonada. "Se eu não tenho nada, tenho você", ela canta, "pois nós não temos nada além de amor". É incrível como a mesma Beyoncé que costuma impor-se como poderosa e independente, frequentemente também se amostra devotada ao homem amado de uma maneira quase submissa (como em "Dangerously in love", canção de seu primeiro álbum).
A segunda canção é "I care", outra balada forte e dramática, com ecos no refrão ("La la la la la...") que remetem-nos a "Beautiful liar", canção de Beyoncé em parceria com Shakira. Logo depois vem "I miss you", talvez a balada mais bela do álbum, composta por Beyoncé juntamente a Shea Taylor, cujo tom triste e levemente sombrio lembra "Disappear", outra linda canção do álbum anterior, "I am Sasha Fierce". 

Em seguida vem "Best thing I never had", a equivalente de "Irreplaceable" (do álbum "B'day") do álbum "4": um rhythm and blues envolvente e light cuja letra fala sobre as benesses do término de um relacionamento. A quinta faixa é "Party", uma canção festiva à moda antiga, com a participação de Kanye West e Andre 3000, do Outkast. Pelo título, poderíamos imaginar que "Party" seria a canção do álbum que mais se identificaria com os hits anteriores de Beyoncé... Mas não! "Party" é a primeira canção de "4" que mostra uma Beyoncé antenada na funk music dos anos 70 e a soul music do início dos anos 80.

The Chi-Lites, conjunto musical que sempre inspirou
Beyoncé; e na foto ao lado, ela cantando "Rather die
young" em seu DVD "Live at Roseland"
E falando em black music dos anos 70 e 80, a sexta faixa é "Rather die young", mais uma canção em que Beyoncé declara-se desesperadamente (no refrão, ela canta: "Eu prefiro morrer jovem do que viver sem você, prefiro nem mesmo viver do que viver sem você"); mais uma canção cuja sonoridade lembra a música negra destas décadas, de grupos como The O'Jays ou The Jackson Five. Em seu DVD "Live at Roseland - The elements of 4", Beyoncé diz que "Rather die young" foi inspirada nos Chi-Lites, grupo de soul cujo auge do sucesso deu-se no final da década de 1960 e início da década de 1970. Não é a primeira vez que os Chi-Lites servem de inspiração para Beyoncé: o grande sucesso da estréia solo de Beyoncé em 2003, "Crazy in love", contém uma sample de "Are you my woman?". Falarei mais adiante a respeito destas e influências da black music na música feita por Beyoncé.

A próxima faixa é "Start over", balada na qual Beyoncé sai-se muito bem nos vocais. O estilo mostra que Beyoncé, juntamente a Shea Taylor (o mesmo de "I miss you") e Ester Dean, que também é cantora, ainda estavam com um pé no álbum "I am Sasha Fierce" quando compuseram "Start over". Curiosamente, foi a única canção de "4" a não ser cantada no DVD "Live at Roseland"... Uma pena, pois a força dos vocais de Beyoncé e todo o drama de "Start over" fariam da performance ao vivo uma apresentação incrível. 

A oitava faixa é a já comentada "Love on top", da qual se pode dizer o mesmo que se disse de "Rather die young". É perfeitamente possível imaginar Chaka Khan, Teena Marie ou as Mary Jane Girls  cantando algo como "Love on top" nos anos 1970 ou 1980, tamanha a identidade da canção! Outro destaque é a forma como, nos segundos finais, Beyoncé vai aumentando o tom a cada vez que repete o refrão, atingindo notas altíssimas e dando um show de alcance vocal.

Posteriormente temos "Countdown", uma deliciosa canção que mescla perfeitamente o rhythm and blues dos tempos áureos e o hip hop moderno, contendo um sample de "Uhh Ahh", de Boyz II Men, no refrão. E falando em hip hop moderno, a décima faixa, "End of time", malgrado mescle vários elementos de world music, havendo Beyoncé até mesmo confirmado que foi inspirada na música do nigeriano Fela Kuti, é a que mais se aproxima dos hits dançantes do passado de Beyoncé - tanto que ensejou uma das melhores coreografias, como se vê em suas performances ao vivo.

A penúltima canção do álbum é "I was here", emocionante balada escrita por Diane Warren, na qual Beyoncé canta sobre a satisfação em ter deixado sua marca no mundo ("Quando eu deixar este mundo, não deixarei arrependimentos; deixarei algo para ser lembrado, para que não se esqueçam de que eu estive aqui; eu vivi, eu amei, eu estive aqui"). É a canção que fecha seu show do DVD "Live at Roseland", e nesta apresentação, é mostrada uma bonita montagem de momentos importantes da carreira de Beyoncé.

Por fim, "4" é encerrado com a frenética "Run the world", cujo toque estridente e contagiante é uma sample de "Pon de floor", de Major Lazer. 

Somente depois, ao pesquisar sobre o álbum, descobri que usar samples de canções de outros artistas, especialmente de grandes expoentes e pioneiros da música negra, é um velho costume de Beyoncé. Em "4", por exemplo, além de "Run the world" e "Countdown", que como já mencionei, contêm samples, "Party" também tem elementos da baladinha "Right and a wrong way", de Keith Sweat, de "Footsteps in the dark", dos Isley Brothers, e do sucesso  de Doug E. Fresh, "La di da di".

Diga-se de passagem que o rapper Doug E. Fresh, considerado um dos pioneiros do beatbox, inspirou ainda a base da versão original de "Best thing I never had", que pode ser conferida neste vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=O-ap9zvR8qM&feature=related. Esta versão, que acabou sendo modificada até tornar-se aquela que escutamos no álbum, contém sample da bateria da canção "The Show", também de Doug.

Pesquisando mais afundo, descobrimos que desde a época das Destiny's Child, Beyoncé e seus produtores usavam samples de canções de seus artistas favoritos; por exemplo:

* Em Bootylicious, sucesso das Destiny's Child, a abertura da canção é feita com um riff de guitarra de Stevie Nicks, retirado da canção "The edge of seventeen";
* "Baby boy", segundo single do primeiro álbum solo de Beyoncé, foi inspirado em "Hot Stepper", canção do jamaicano Ini Kamoze;
* "Naughty girl", também do álbum "Dangerously in love", contém referência explícita ao sucesso de Donna Summer, "Love to love you baby";
* A baladinha "Be with you", do mesmo álbum, foi baseada em "Ain't nothing I can do", cantor de rhythm and blues dos anos 70;
* O instrumental triunfal que abre "Upgrade u", sucesso do segundo álbum de Beyoncé, foi extraído da canção "Girls can't do what the guys do", de Betty Wright.


Logo se percebe que Beyoncé apraz a black music em suas várias vertentes e nuances, desde o soul, jazz, blues, disco music e o rhythm and blues, até o funk, rap e hip hop, passando ainda pelas variações com elementos de outras culturas, como o dancehall e o ragga. Em suas músicas, encontramos referências e influências da música negra dos anos 60 até os anos 90. Ela própria cita Michael Jackson, Luther Vandross, Diana Ross, Donna Summer, Aretha Franklin, Mary J. Blidge, Tina Turner e as TLC como suas grandes influências (fonte: http://thebeyoncefablogbrasil.blogspot.com/2010/08/artistas-que-influenciam-beyonce.html). Beyoncé valoriza suas raízes, e isto se reflete na música que compõe, canta e produz.


Audrey Hepburn, em "Funny Face", e Beyoncé,
em "Countdown". Crédito da foto: site Roc 4 Life 
E não é só na sonoridade que a cantora gosta de agregar componentes da obra de seus ídolos. Nos videoclipes e performances, Beyoncé também homenageia, ou às vezes até mesmo imita, grandes dançarinos e coreógrafos. Assim ela fez em seu recente videoclipe "Countdown", do álbum "4", no qual há uma cena em que se veste igual à personagem de Audrey Hepburn no filme "Funny Face". Neste mesmo clipe, Beyoncé reproduz uma coreografia da belga Anne Teresa De Keersmaker. "Countdown" ainda faz alusões a Twiggy e Diana Ross. 


A coreografia de "Single ladies", talvez a mais famosa da carreira de Beyoncé, também contém passos retirados da obra de Bob Fosse, "Mexican breakfast", de 1969, como se observa na montagem abaixo (créditos do blog Mitinguis):






Não é raro ver notícias na mídia de artistas acusando Beyoncé de plágio. No que concerne ao álbum "4", além do clipe de "Countdown", os clipes de "Love on top" e "Party" também foram alvos de críticas, devido às excessivas semelhanças com os vídeos de "If it isn't love", da banda New Edition, e "My neck my back", da cantora Khia, respectivamente. 


Não se sabe qual a intenção de Beyoncé ao fazer estas referências escancaradas, quase cópias mesmo, a tantas obras. Provavelmente, ao ouvi-las ou assisti-las, ela encontra a inspiração para algo novo; mas, ao que parece, ela não se importa em ser considerada uma imitadora, pois continua inserindo elementos de canções/coreografias preexistentes em seus próprios trabalhos. 


Algo não se pode negar: aquele que se propõe a pesquisar sobre as obras originais que acabam gerando as obras de Beyoncé, acaba descobrindo muito mais acerca dos gêneros e artistas que tanto a inspiram. Foi assim comigo. Se a black music sempre me fascinou, fiquei ainda mais admirada ao ver a extensão do gosto musical de Beyoncé, e a profundidade de seus conhecimentos a respeito. 


Plagiadora ou não, Beyoncé tem o mérito de levar a música negra às pessoas que consumem sua música. Mesmo que de forma indireta ou inconsciente, quem ouve "Crazy in love" está ouvindo The Chi-Lites, quem ouve suas baladas rhythm and blues está conhecendo um pouco de Diana Ross e Toni Braxton, e quem dança ao som de "Run the world" está celebrando o legado de Fela Kuti. 




Beyoncé é, sem dúvidas, um dos maiores ícones da cultura negra de todos os tempos. Não à toa foi eleita pela Billboard como a artista feminina da década de 2000-2009, e a revista Forbes colocou-a em primeiro lugar ao eleger as mulheres afro-americanas mais poderosas dos Estados Unidos.


O sucesso e ascensão de Beyoncé - que já vinha sendo preparado desde a época em que ela era a líder da girl band Destiny's Child, mas que consolidou-se quando ela lançou seu primeiro álbum solo, restando "Crazy in love" como a canção mais executada do ano de 2003, segundo o site Rock on the net - serviu para as negras dos Estados Unidos (e, por que não?, do mundo inteiro) como uma amostra de que as mulheres negras podem ser o que quiserem: poderosas, independentes, admiradas pelo corpo mas também pelo talento. Qual outra mulher no mundo consegue a proeza de estar, ao mesmo tempo, no topo da lista dos artistas recordistas do Grammy Awards, e no topo da lista das mulheres mais desejadas do planeta? Em um país como os Estados Unidos, onde ainda se encontra vestígios de racismo, o fato de uma negra ser a resposta para estas perguntas é bastante significativo.


Além de um marco na história do povo negro, e na história das mulheres, Beyoncé é também um marco na história da música negra, e ademais, da música como um todo. Acredito que isto é suficiente para lhe conferir a prerrogativa de reproduzir e contemporizar obras de artistas que abriram caminho para que ela se tornasse o que é hoje. 

Um comentário:

Anônimo disse...

Linda Resenha. Parabéns!