terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Samples: plágio ou homenagem?

Pesquisando para escrever sobre as influências que a música soul, disco e funk exerceram na obra de Beyoncé, surpreendi-me ao descobrir quantas samples há em suas canções. Aos que não sabem, samples, ou samplings, são pedaços de canções inseridos em outras. É o que se vê, por exemplo, em "I'll be missing you", sucesso do rapper P. Diddy (à época, 1997, ele ainda era chamado de Puff Daddy), cujo refrão contém uma sample com os versos inicias de "Every breath you take", balada lançada em 1983 pela banda The Police.

Em pesquisas mais aprofundadas, admirei-me ainda mais ao constatar como é comum, na indústria da música pop, o uso de samples e a produção de canções explicitamente inspiradas em outras. Acabei encontrando o site Who Sampled, o qual se propõe a "explorar e discutir o DNA da música" e elenca de forma minuciosa qual canção foi inspirada/sampleada de qual.

Chega a ser assustadora a forma como tantos hits da cultura pop dos últimos anos carecem de originalidade! Não que eu condene a idéia de reciclar a genialidade de pioneiros dos gêneros musicais... Simplesmente fiquei surpresa ao saber que estava errada ao pensar que tratavam-se de criações concebidas na minha época.

Vários hits modernos cuja essência da primazia consiste justamente no instrumental, que por algum motivo ou outro se destaca, na verdade não passam de cópias ou releituras de outras canções preexistentes. Cite-se, por exemplo, "I gotta feeling", dos Black Eyed Peas, que fechou o ano de 2009 como uma das canções mais executadas nas rádios e nas pistas de dança. Deveras, sua inconfundível parte instrumental não pode ser considerada uma criação do grupo, porque se trata da base da canção "Take a dive", de Bryan Pringle, lançada dez anos antes.




É também o caso de "Crazy in love", mega hit de 2003 da já comentada Beyoncé, cujo instrumental composto pelas metaleiras e a batida escandecente é uma reprodução integral de uma parte da canção "Are you my woman", do grupo The Chi-Lites, lançada em 1971, ou seja, 32 anos antes de "Crazy in love"; e "Get right", single de Jennifer Lopez, lançado em 2005, cujo solo de saxofone que marca a canção foi extraído de "Soul power 74", canção de Maceo and The Macks, lançada em 1974, ou seja, mais de 3o anos antes.


Em canções de rap, é mais compreensível o uso de samples. Afinal, rappers geralmente não são trabalham com melodias, apenas com letras. Sendo assim, fazem uso de refrões ou bases de outras canções já conhecidas para colocarem seus raps por cima. Talvez por este motivo os rappers são recordistas em uso de samples. Vejamos, por exemplo, Eminem e Nicki Minaj:





Mais surpreendente ainda é ver que existem canções inteiramente sampleadas! Como exemplo temos dois singles do primeiro álbum solo de Fergie, vocalista dos Black Eyed Peas, lançado em 2006: "Fergalicious" e "Clumsy".  

O hit "Fergalicious" é uma junção de três sucessos da velha guarda oitentista do hip hop americano: 
* "Throw the dick" de 2 Live Crew, canção de 1986, da qual foi retirada a batida e os versos de rap ("Listen up y'all..."); 
* "Give it all you got", de Afro-Rican, de 1987, cujos segundos iniciais - o beat zonzo e a contagem "Four, tres, two, uno" - foram integralmente reproduzidos; 
* "Supersonic", funk eletrônico de J. J. Fad, lançado em 1987, e que rendeu a "Fergalicious" a melodia dos versos. 

Já a popzinha "Clumsy" é pouco mais que uma combinação de um rock de 1956, "The girl can't help it", do lendário Little Richard, com os teclados de "The bubble bunch", de 1982, do pioneiro do rap eletrônico Jimmy Spicer. Basta ouvir as canções originais para perceber... "Clumsy" é uma soma das duas. 

Dois outros exemplos de canções compostas absolutamente por elementos de outras canções são "Dilemma", dueto de Nelly e Kelly Rowland que dominou as paradas musicais em 2002: enquanto a batida e melodia são da balada "You and me" (1977), de George Duke, o refrão romanticamente cantado por Kelly é uma sample de "Love, need and want you" (1983), da diva da soul music Patti LaBelle; e "Come back to me", primeiro single da cantora e atriz Vanessa Hudgens, lançado em 2006: o estilo de cantar dos versos iniciais remete a "Complicated" (2002), também o primeiro sucesso da canadense Avril Lavigne, e em toda a canção encontramos ecos do grande hit de 1970, "Baby come back", do grupo Player.

Estes são apenas alguns exemplares... Existem centenas de sucessos da música pop que contêm elementos escancarados de outros sucessos do passado, sem contar os que foram somente inspirados em outros, com influências menos perceptíveis.

Seria a lei de Lavoisier ("nada se cria, nada se perde; tudo se transforma") aplicada à música pop? Em praticamente todos os exemplos citados acima, as referências são à era old school da música negra dos Estados Unidos, desde o soul revolucionário da Motown, representado por ícones como Michael Jackson, Stevie Wonder, Four Tops e Supremes, até os precursores do hip hop moderno, aqueles que, entre os anos 80 e 90, ousaram agregar componentes eletrônicos ao rap e ao funk. Será que, depois de todas essas explosões de criatividade dadas entre as décadas de 1960 e 1990, não se criou mais nada? Tudo é uma cópia, uma reprodução, uma releitura? Ou seria apenas inspiração, homenagem?

Em hits como "Dirty bit", dos Black Eyed Peas, e "On the floor", de Jennifer Lopez, de 2010 e 2011, a menção é muito explícita, já que ambos usam samples de super sucessos dos anos 80 ("The time of my life", de Bill Medley e Jennifer Warnes, e "Lambada", do grupo Kaomarespectivamente) sem o menor pudor. Pode-se inclusive dizer que as criações de ambos foram especialmente baseadas nas versões inspiradoras, razão pela qual, acredito eu, trata-se de canções homenageantes, e não plagiantes. 

Em outros casos, contudo, a intenção de imitar é manifesta, como em "Mary Jane's shoes", de Fergie, cuja melodia do refrão é totalmente igual ao imortal refrão de "No woman no cry", do jamaicano Bob Marley; ou como em "U can't touch this", canção que consagrou o rapper MC Hammer em 1990, e que possui a mesma batida, melodia, ritmo e estilo de "Super freak", canção de 1981, de Rick James.

Se procurarmos com afinco veremos que, em termos de música pop nos moldes atuais (aquela produzida com bases eletrônicas), quase tudo faz alguma alusão ou possui alguma referência a alguma obra antiga. Qual o limite até o qual se pode dizer que uma obra é ou não original? A questão é tão séria que, por exemplo, o grande hit de Lady GaGa neste ano, "Born this way", é acusado por todos de ser um plágio de "Express yourself", que Madonna lançou em 1989; mas esta canção, por sua vez, também é uma sample de "Respect yourself", de 1972, do grupo de soul The Staple Singers. Ou seja: uma imitou outra, que imitou outra... 

Um mesmo conceito viajando por décadas: nos anos 1970, as Staple Singers; nos anos 1980, Madonna; nos anos 2010, Lady GaGa

Porém, o fato é que nunca se sabe até que ponto inspirar-se em uma canção para fazer outra é uma atitude condenável. Grandes canções que marcam gerações podem muito bem não serem 100% originais e ainda assim serem incríveis. "Single ladies", de Beyoncé, por exemplo, foi um dos grandes hits do ano de 2009 e com certeza entrou para a história da música pop, devido ao enorme sucesso de seu refrão, videoclipe e coreografia; mas há quem diga que a batida da canção é uma versão remixada da batida de "Switch" (2005), de Will Smith; e mesmo assim, "Single ladies" não perde seu brilho e genialidade. "Don't stop the music", grande hit dance de Rihanna em 2007, contem elementos vocais de "Wanna be startin' something" (1982), de Michael Jackson, e isto não desmerece a canção, já que apenas a ilustra. E até o ousado e imortalizado sucesso de 1985 de Madonna, "Like a virgin", teve alguns segundinhos (os iniciais, mais especificamente) furtados de "I can't help myself", balada dos Four Tops, lançada 20 anos antes, e nem isso constitui empecilho para que "Like a virgin" ocupe lugar de destaque na história da música pop, afinal, a parte "copiada" apenas serviu para que a música se inicie de forma interessante, não havendo mais sinais de sample no restante dela.

Outrossim, há de se levar em consideração o fato de que os compositores e produtores das canções mencionadas são músicos que passaram toda a vida escutando grandes artistas que os inspiram e fascinam... É natural que a obra destes exerça influência sobre a obra daqueles. Um verso, uma nota, um solo de algum instrumento, uma batida impressionante, uma frase de impacto; qualquer elemento de alguma canção pode chamar a atenção de um ouvinte, e este ficará com isto em mente, até que ele o coloque em seu próprio trabalho. Até onde vão as regras que limitam a obra de quem trabalha com arte, criatividade, música, inspiração?

Os samples utilizados em sucessos atuais, portanto, são uma prova e uma amostra da relevância que a música das décadas passadas possui até hoje. É de se lamentar que muitas pessoas desinteressadas nas raízes da música ouçam alguns sucessos contemporâneos e dêem aos seus intérpretes os créditos, quando na verdade a origem daquilo que efetivamente faz da canção algo especial está na obra de alguém que morreu antes mesmo da pessoa nascer. 

Entretanto, às pessoas que gostam e se preocupam em pesquisar sobre música, os samples levam-nas a descobrir artistas desconhecidos, sonoridades diferentes, e a entender melhor sobre o princípio dos gêneros musicais. Se os sampleadores conseguirem atingir esse escopo de levar às novas gerações o brilhantismo da música dos antepassados, creio que seus trabalhos são dignos de muito mérito.

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