ESCRITO POR GABRIEL PERISSÉ | |||
30-MAR-2011 Certa vez, um professor cismou que era um rato. Passou a comer restos de comida todos os dias. Trazia lixo para dentro de casa. Rastejava. Deixou os fios de seu bigode crescerem. Acreditava que eram uma antena que o ajudava a se locomover em ambientes sem luz. Exprimia-se entre espaços apertados. Era comum vê-lo enfiar as mãos em brechas de paredes. Abria a geladeira e cheirava com impaciência todos os alimentos. Ficava roendo páginas de livros. Estava sempre à espreita, desconfiado. Familiares e amigos, assustados com seu comportamento, resolveram levá-lo a uma clínica psiquiátrica, onde os médicos, durante meses a fio, se empenharam em fazer o professor tomar consciência de que era um professor, e não um rato. Lutaram para que se lembrasse de seu conhecimento, dos milhares de alunos que ajudou a formar, das centenas de milhares de provas e trabalhos que corrigiu. Não era fácil. O professor queria fugir. Olhava para os médicos como uma cobaia presa no laboratório. Andava de um lado para o outro como se estivesse dentro de um labirinto. Às vezes, encurralado no canto de uma sala, tremia e guinchava. Graças à persistência dos médicos, o professor foi aos poucos recuperando a sua personalidade. Perguntavam-lhe todos os dias: "O senhor é um professor ou um rato?" E lhe davam mil e um argumentos para se convencer de que era, de fato, não um rato. De que era um professor, um mestre, um educador! Depois de um ano letivo inteiro, o professor deu sinais de que estava curado. As avaliações inter e multidisciplinares, os testes constantes, as provas, os exames indicavam que o professor voltara a ser professor. Nada de aprovação automática. Sua recuperação foi supervisionada passo a passo. Num belo dia, os médicos deram-lhe alta com notas altas! E lhe disseram que podia voltar a lecionar. O professor se despediu, caminhou pelo longo corredor, até sumir das vistas dos médicos e enfermeiros. Dois minutos depois, o professor entrou espavorido, suando frio, olhos arregalados, na sala de um dos médicos. Gritava: — Doutor! Pelo amor de Deus! Me ajude! Tem um gato na saída da clínica! — Mas, professor, o senhor não precisa ter medo. O senhor é um professor, lembra-se? É um professor e não um rato. — Certo, doutor. Isso eu já sei. Mas será que o gato também sabe? Gabriel Perissé é doutor em Educação pela USP e escritor. Website: http://www.perisse.com.br/ Li este interessantíssimo texto de Gabriel Perissé no site Correio da Cidadania (o qual, aliás, eu recomendo, por trazer sempre outros textos de grande qualidade), e após pensar nele por várias dias, lembrei-me de uma conversa que tive um dia com uma colega mais velha que eu. Ela me contava sobre sua família, seus avós que eram analfabetos, e sobre seu pai que apenas conseguiu concluir os estudos porque teve aulas particulares Sou filha de uma professora e, como se não bastasse acompanhar de perto o dia a dia deste tipo de profissional, praticamente também cresci dentro do ambiente escolar. A escola era minha segunda casa, pois estes eram os dois únicos lugares que eu frequentava. Cresci vendo como se dava a dinâmica de uma escola, e tive o privilégio de ver os dois lados: fui aluna, interagia com os alunos, mas também conhecia intimamente todas as professoras, diretoras e demais funcionárias da minha escola. Cresci assistindo o empenho de minha mãe, suas dificuldades para tentar resolver problemas de seus alunos, sua busca incessante por tentar encontrar novas e atraentes maneiras de ensinar... Aquela era uma outra vida. Porque, além de tudo isso, ela ainda era mãe, esposa, e tratava de inúmeras outras coisas... Não era fácil. Eu era muito criança, mas nem é preciso ser tão madura para perceber que se ela ainda mantinha aquele emprego, era porque gostava. Imagino o quanto devem ser infelizes os professores que exercem a profissão sem um pingo de paixão. O ofício já é difícil por si só; sem um mínimo de interesse, fica insuportável. De fato, a maior recompensa de um professor é o sucesso e a superação de seus alunos. Este é o verdadeiro resultado. Salário é consequência: não só porque hoje em dia paga-se muito mal aos professores, mas também, e principalmente, porque o salário não paga o que um bom professor realmente faz. Não, não paga! O salário diz respeito ao planejamento da aula, ao preenchimento do diário, à elaboração dos exercícios, à correção das provas, à exposição do conteúdo em sala de aula. Mas e quanto àquele professor que te motiva, te inspira e te instiga a buscar sempre mais, ler e ser sempre mais, querer ser cada vez melhor? E quanto ao professor que enxerga nos seus olhos a dor que você tenta esconder, e conversa com você como se aula ou matéria nenhuma fosse mais importante que te ajudar a lidar com seus problemas? E quanto ao professor que enxerga dentro de você a vocação que nem você sabe que possui? E quanto ao professor que te entende, te aconselha, te mostra o caminho? Não. Salário não paga isso. Se alguma vez você já pagou R$15 por um ingresso de cinema, para ver um filme que mudou sua vida, te fez rir demais, ou chorar demais, e te tocou profundamente, então você sabe do que estou falando. Se alguma vez você já pagou caríssimo para estar em lugar, com uma determinada pessoa, e teve o melhor dia ou noite da sua vida, você sabe do que estou falando. Há coisas que não se pode quantificar; aliás, para algumas coisas, torna-se até deselegante tentar valorar financeiramente. Até parece que dinheiro corresponde exatamente às coisas que ele pode comprar! É uma mesquinharia pensar assim. O dinheiro é a moeda de troca que inventamos para tentar balancear o status de todas as pessoas que precisam adquirir coisas. Seria lindo se todos estivéssemos dispostos a dar um pouco do que temos sem pedir nada em troca, mas isto nos colocaria em uma situação precária e nos prejudicaria, pois de tanto darmos, nada mais teríamos. Precisamos de dinheiro para viver, para sobreviver, para sermos felizes, para sermos infelizes, para resolvermos nossos problemas ou arranjarmos novos. É claro que todo professor deveria ser melhor remunerado. Qualquer discussão sobre isto é extremamente desnecessária, pois trata-se de uma questão de sobrevivência: sem dinheiro, não se vive. Todavia, o ideal seria que se aumentasse e melhorasse outro tipo de coisa que o professor recebe: o respeito e o reconhecimento, por parte da sociedade. E isto é uma questão de mentalidade. A triste e injusta condição atual dos professores brasileiros fez com que o curso de Pedagogia passasse a ser mal visto e pouquíssimo incentivado, assim como outros cursos superiores, como Letras, e todos os demais cursos de licenciatura. Apenas cursos como Direito, Medicina e Engenharia são tidos como “de elite”, justamente porque as pessoas os associam ao sucesso, financeiramente falando. E o sucesso do professor que consegue encaminhar bem os seus alunos, do professor que alfabetizou o menino que um dia tornou-se uma importante personalidade? Ninguém se importa. O salário do professor é ruim – isso é tudo que dizem. O grande problema do Brasil, aliás, a matriz de praticamente todos os problemas, é a mentalidade das pessoas. Melhorar as condições de trabalho dos professores faria muito pela classe, pois somente com salários melhores estes profissionais passariam a ter sua importância reconhecida pela sociedade. Atualmente se acredita que por um bom salário, qualquer tipo de ofício é bom, é digno, é válido. Dinheiro não é tudo: o professor também precisa de autoestima, respeito, estímulo – mas, paradoxalmente, só conseguirá isso quando começar a ganhar mais dinheiro. Porque, infelizmente, é assim que se lida com gente medíocre: fale na língua deles, use elementos que eles valorizem, e aí eles passam a te admirar. Resta saber se é este tipo de mentalidade que queremos para nosso país. Ah, e como não poderia deixar de ser, com a montagem abaixo faço uma homenagem aos queridos professores da ficção, e estendo-a aos professores da vida real, que tentam colaborar para a construção de um mundo melhor!
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domingo, 3 de abril de 2011
Respeito aos professores
O professor não é um rato
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