sábado, 16 de julho de 2011

A ira: considerações de cunho científico, religioso, moral, histórico e jurídico


Ontem assisti a um interessante documentário no canal History Channel (que, aliás, é um dos que mais tenho assistido nestas férias). Trata-se da série "Sete pecados capitais", a qual analisa o impacto que a teoria dos sete pecados, bastante mencionada no Cristianismo (mas cuja origem antecede a ele), gera na sociedade atual. Traz perspectivas históricas e científicas, além de, é claro, mostrar bastante o aspecto moral e religioso. A série é excelente, e eu recomendo.

O episódio de ontem analisou o pecado da ira. Muitas coisas me intrigaram e chamaram a minha atenção.

Em primeiro lugar, achei muito interessante tratarem sobre os efeitos e consequências da vinda de Jesus Cristo à Terra. Antes dele, a ira era, de certa forma, aceita, e em certas ocasiões, até mesmo valorizada, porque inflamava os soldados e fazia com que fossem à guerra com mais bravura e paixão. Segundo o documentário, porém, Jesus causou uma grande transformação na sociedade quando, em vez de incentivar a ira e a violência, pregou que devemos oferecer a outra face. Caiu por terra, então, a lei de Talião, quando Jesus disse:

"Aprendestes que foi dito: olho por olho e dente por dente. - Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal que vos queiram fazer; que se alguém vos bater na face direita, lhe apresenteis também a outra; - e que se alguém quiser pleitear contra vós, para vos tomar a túnica, também lhes entregueis o manto; - e que se alguém vos obrigar a caminhar mil passos com ele, caminheis mais dois mil. - Dai àquele que vos pedir e não repilais aquele que vos queira tomar emprestado."  (Mateus, V: 38 a 42.)

Deduzo eu o quanto deve ter sido chocante, para uma sociedade que ainda via nas guerras e batalhas o mais eficaz meio de resolver seus litígios, escutar Jesus dizendo que devemos amar os nossos inimigos e não sucumbir à tentação de atender à nossa ira. 

A segunda coisa abordada no documentário que me encantou, previsivelmente, por eu ser estudante de Direito, foi a história da primeira vez em que a ira justificou um crime e concedeu a absolvição ao autor deste. No momento em que flagrou sua esposa em adultério, o marido irado assassinou-a. A defesa alegou a tese da insanidade temporária, ou seja, do sentimento que arrebatou o espírito do marido a ponto de fazer com que perdesse os sentidos por um momento, vindo a cometer um crime que provavelmente não cometeria se estivesse em seu juízo perfeito.O marido não foi condenado, e este caso serviu de precedente para vários outros crimes passionais nos Estados Unidos. Até hoje - inclusive, segundo o documentário, a legislação do Estado do Texas possui uma disposição neste sentido - há quem sustente que a conduta destes criminosos é compreensível, pois que semelhante situação deixaria a pessoa tão cega de raiva, que qualquer pessoa seria capaz de matar nestas circunstâncias. Há, contudo, quem diga que isso não passa de um artifício para driblar a lei e proteger aqueles que cometem o pecado da ira.

Aqui no Brasil, por muito tempo falou-se em legítima defesa da honra, tese exaustivamente usada por advogados de defesa de maridos que matam suas esposas por terem flagrado-nas em adultério. Luiza Nagib Eluf fala bastante disso em seu livro "A paixão no banco dos réus". Com o tempo, esta tese foi se tornando defasada, e hoje em dia não é mais aceita. 

Outra tese cabível, dentro da legislação brasileira, seria a inexigibilidade de conduta diversa, que é considerada uma excludente de culpabilidade, a qual faz com que não haja mais pressuposto para a aplicação da pena - enquanto que a legítima defesa é um excludente de ilicitude, ou seja, retira o caráter ilícito da conduta. É o que pode ser dito, para o momento, sem que eu me aprofunde no mérito da questão e comece a falar de Direito aqui:

A ira é uma emoção tipicamente humana, e como tal, recebe proteção jurídica na medida em que não se poderia exigir, de um indivíduo mediano, que agisse de outra forma diante de determinada situação (excludente de culpabilidade), ou ainda, na medida em que este mesmo indivíduo se vê em posição de precisar escolher entre dois bens jurídicos (excludente de ilicitude). Isto, contudo, não quer dizer que os sentimentos mais inferiorizados do ser humano devem ser perdoados e aceitos apenas porque fazem parte de sua própria natureza.

O que o Direito objetiva, com estas ressalvas, não é dar respaldo a atitudes que colocam em risco o bem estar da sociedade, mas sim, fornecer àqueles que cometem este tipo de crime um tratamento humano, de acordo com aquilo que se pode esperar de qualquer ser humano normal; afinal, o Direito não espera que sejamos heróis. As leis existentes não foram pensadas para uma sociedade ideal, mas sim, justamente, para regular uma sociedade que ainda está longe da perfeição.

Por isso mesmo, o legislador não pode ignorar que existem emoções comuns a todos os seres humanos, e deve discipliná-las de forma a coagir os indivíduos a conter as emoções que ameaçam a paz da sociedade, mas ao mesmo tempo, compreendendo-as como típicas de pessoas que não são perfeitas.

Neste ponto entra outra abordagem que o documentário fez: a origem natural da ira, o seu componente químico. Cientistas e médicos afirmam que este sentimento pode ter seu núcleo situado na amídala cerebral. Acolher esta assertiva pode trazer vários conflitos, como sugeriu um especialista entrevistado no documentário, o qual indagava como uma emoção natural pode ser considerada pecado.

Considero esta pergunta fácil de ser respondida: nem tudo que é natural é moralmente correto ou aceitável. 

No Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo IX, item9, o qual fala sobre a cólera (que  nada mais é do que a própria ira), ela é apresentada como um sentimento que faz com que o ser humano se assemelhe aos animais. O mesmo pode ser dito de outros sentimentos. Nós, humanos, imperfeitos que somos, ainda temos emoções animalizadas, irracionais; todavia, como se sabe, o que nos diferencia dos animais é justamente a capacidade de raciocinar, e de conseguir colocar a razão em posição superior ao instinto natural. 

É nisto que reside a necessidade de usarmos o cérebro e o nosso senso de moralidade, para entender que nem tudo que brota do nosso íntimo pode ser aceito, pois que, acima de qualquer impulso ou ímpeto, existem leis. Sejam estas leis morais ou positivadas nos diplomas legais, o certo é que elas existem, conforme o supra dito, para tentar trazer um pouco mais de tranquilidade e justiça para a sociedade em que vivemos.

Nos últimos minutos do documentário, uma psicóloga falava sobre a terapia de controle da raiva, tão popularizada hoje, tamanha é a ira que tem acometido as pessoas. Ela disse, entre outras coisas, que o enfoque religioso da ira é inútil no mundo moderno, e que nunca conseguiu convencer um paciente a não dar asas à sua ira por medo de ir ao inferno. Segundo esta profissional, o argumento bíblico, segundo o qual a ira é um grande pecado, não possui mais tanta força, e que tem sido mais eficaz tratar seus pacientes partindo da premissa de que a ira pode estragar as relações humanas. Este argumento, além de verdadeiro e cientificamente provado, é mais convincente; afinal, diz ela, todo indivíduo quer ter sucesso em seus relacionamentos, com a família, amigos ou cônjuge.  

Aqui é também oportuno que eu fale sobre o quanto a doutrina espírita é esclarecedora e diferenciada de outras religiões. A psicóloga não está errada quando diz que o argumento bíblico é ineficiente. Infligir um medo infundado nas mentes das pessoas é subestimar a capacidade delas de raciocinarem e entenderem as causas e efeitos de seus próprios atos. 

Foi-se o tempo em que se podia impor a ordem em uma sociedade através do medo - foi assim com Moisés, mas quantos séculos se passaram desde Moisés! Hoje, apesar de todos sermos ainda moralmente pobres e fracos, estamos intelectualmente mais evoluídos. Queremos saber como as coisas se dão, entender o porquê delas. O que não possui razão de ser, não mais nos convence.

O Espiritismo vem, justamente, somar à religião o elemento filosófico e o científico, propondo uma fé raciocinada, embasada em verdades lógicas. 

Como dizer o que é o certo e o que é errado, sem explicar por quê? Alguém ainda aceita ser guiado por princípios cujos fundamentos desconhece? Só o que é racional pode trazer real segurança e tranquilidade de espírito, pois todos precisamos de bases nas quais nos apoiar. Nesta seara é que o Espiritismo vem trazer explicações sobre as coisas que, durante séculos, a humanidade contentou-se em acatar sem refletir a respeito.

Sobre o nosso assunto, por exemplo, a visão espírita fornece esclarecimentos sábios, os quais, permissa venia, exporei aqui, como forma de fechamento deste texto, convidando todos a sobrepensarem a ira e a cólera:

            "O orgulho vos leva a vos julgardes mais do que sois, a não aceitar uma comparação que vos possa rebaixar, e a vos considerardes, ao contrário, de tal maneira acima de vossos irmãos, seja na finura de espírito, seja no tocante à posição social, seja ainda em relação às vantagens pessoais, que o menor paralelo vos irrita e vos fere. E o que acontece, então? Entregai-vos à cólera.
            Procurai a origem desses acessos de demência passageira, que vos assemelham aos brutos, fazendo-vos perder o sangue frio e a razão: procurai-a, e encontrareis quase sempre por base o orgulho ferido. Não é acaso o orgulho ferido por uma contradita, que vos faz repelir as observações justas e rejeitar, encolerizados, os mais sábios conselhos? Até mesmo a impaciência, causada pelas contrariedades, em geral pueris, decorre da importância atribuída à personalidade, perante a qual julgais que todos devem curvar-se.
            No seu frenesi, o homem colérico se volta contra tudo, à própria natureza bruta, aos objetos inanimados, que espedaça, por não o obedecerem. Ah!, se nesses momentos ele pudesse ver-se a sangue frio, teria horror de si mesmo ou se reconheceria ridículo! Que julgue por isso a impressão que deve causar aos outros. Ao menos pelo respeito a si mesmo, deveria esforçar-se, pois, para vencer essa tendência que o torna digno de piedade.
            Se pudesse pensar que a cólera nada resolve,que lhe altera a saúde, compromete a sua própria vida, veria que é ele mesmo a sua primeira vítima. Mas ainda há outra consideração que o deveria deter: o pensamento de que torna infelizes todos os que o cercam. Se tiver coração, não sentirá remorsos por fazer sofrer as criaturas que mais ama? E que mágoa mortal não sentiria se, num acesso de arrebatamento, cometesse um ato de que teria de recriminar-se por toda a vida!
            Em suma: a cólera não exclui certas qualidades do coração, mas impede que se faça muito bem, e pode levar a fazer-se muito mal. Isso deve ser suficiente para incitar os esforços por dominá-la. O espírita, aliás, é incitado por outro motivo: o de que ela é contrária à caridade e à humildade cristãs."

UM ESPÍRITO PROTETOR
Bordeaux, 1863
(O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo IX, "A cólera", item 9)

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