domingo, 21 de novembro de 2010

Alguém tem que fazer o poema sujo

Façam a festa
          cantem e dancem
que eu faço o poema duro
                                  o poema-murro
                                  sujo
                                  como a miséria brasileira 
       Não se detenham:
       façam a festa
                             Bethânia Martinho
                             Clementina
       Estação Primeira de Mangueira Salgueiro
       gente de Vila Isabel e Madureira
                                                           todos
                                                           façam
                     a nossa festa
enquanto eu soco este pilão
                            este surdo
                                  poema
que não toca no rádio
que o povo não cantará
(mas que nasce dele)
Não se prestará a análises estruturalistas
Não entrará nas antologias oficiais
                      Obsceno
como o salário de um trabalhador aposentado
                      o poema
terá o destino dos que habitam o lado escuro do país
                      - e espreitam.



("Poema obsceno", de Ferreira Gullar)

Li este poema pela primeira vez quando tinha 15 anos, na escola. Certamente não o teria compreendido tão cedo se, no exato momento em que o li, não estivesse passando por uma situação que permitisse me identificar com ele.

Eu admito que não sou tão inteligente quanto poderia (ou gostaria de) ser: há um sem-número de textos, frases, poemas, livros e filmes que eu não entendo. Há obras consideradas cult justamente por causa desse sentido escondido, da metáfora, da mensagem por trás das palavras; eu não entendo todas, confesso. Não faço a menor ideia do que Manuel Bandeira estava pensando quando escreveu "Pneumotórax", não tenho a menor noção do que ele quis dizer ou se de fato queria mesmo dizer alguma coisa. Provavelmente eu também não entenderia patavinas do “Poema obsceno” de Ferreira Gullar; mas naquele dia, naquele exato dia em que abri a apostila e dei de cara com ele na minha apostila de literatura, ele falou tudo que eu tinha dentro de mim. Era como se alguém mais culto que eu estivesse ilustrando com palavras o meu próprio desabafo. 

Alguém tem que fazer o poema sujo. Alguém tem que fazer o trabalho árduo, enquanto os outros cantam e dançam.

Hoje, posso interpretar estes versos de outra forma, mas na época soaram assim para mim, como se o eu-lírico se sentisse uma formiga perdida em um mundo de cigarras, obrigada a socar o pilão, enquanto os demais faziam a festa.

Nunca procurei saber o que Ferreira Gullar realmente quis dizer com seu “Poema obsceno”, talvez por medo de descobrir que minha interpretação estava errada, por medo de perder aquele poema que eu já considerava meu, como se tivesse sido escrito para mim, ou mesmo por mim. Apoderei-me daqueles versos, como se pertencessem a mim, e de fato já me pertenciam.

O poeta escreve sobre o que sente, mas o leitor também tem o direito de enxergar seu próprio sentimento nas palavras do poema.  O poema não pertence apenas a quem o escreveu, mas também a quem o lê. Uma vez lançado o poema, uma vez tendo ele saído da esfera de intimidade do poeta e atirado ao público, o leitor pode também apropriar-se do poema. O poeta precisa ter este desprendimento, não pode ser possessivo em relação à própria obra; a menos, é claro, que nunca publique o que escreve, pois só assim os poemas serão só seus.

Da mais alta janela da minha casa 
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a Humanidade.

E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.
Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.
Quem sabe quem os terá?
Quem sabe a que mãos irão?
Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.
Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.
Passo e fico, como o Universo.

("Da mais alta janela de minha casa",  de Alberto Caeiro, heterônimo do português Fernando Pessoa)

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